24/01/2012

PEDRO CAMACHO

 

O fator Gaspar e outros 'parâmetros'


Não há crise que mate a ironia. As agências de rating estão, agora, preocupadas com o excesso de austeridade. E têm razão

A Standart & Poor's acaba de reduzir o nível de confiança do FEEF, o fundo de resgate da Zona Euro, para AA+, o mesmo patamar em que colocou a França e a Áustria, numa análise global aos Estados do euro que apenas deixou Alemanha, Holanda, Luxemburgo e Finlândia com o desejado AAA. Diz a S&P que esta descida do FEEF reflete a redução de notações que aplicou, na mesma altura, a nove países do euro, e da qual Portugal saiu com um carimbo de "lixo".

Assim, a S&P desce o rating do FEEF porque os ratings dos Estados que garantem o FEEF foram revistos em baixa porque... a S&P os considerou merecedores de descida. Está claro que, com a descida do FEEF, o rating dos países que dele beneficiam será também revisto em baixa, aumentando as pressões sobre o fundo e tornando-o ainda menos credível para resolver os problemas de curto/médio prazo, o que voltará a aumentar as pressões sobre os países que o alimentam. E é fácil adivinhar o resto: a S&P, ou a Moody's, ou a Fitch lá estarão, para reduzir o rating ao FEEF, aos Estados que o suportam e aos Estados que dele beneficiam...

É por tudo isto que o governador do Banco Central Europeu defendeu, no Parlamento da UE, que devemos todos aprender a viver como se as agências financeiras não existissem. Ou, no mínimo, habituarmo-nos a olhar para elas como "um parâmetro entre muitos outros".

O "chato" desta proposta é que, enquanto andamos para aqui a tentar não ligar às bizarrias das agências de notação financeira, não lhes atribuindo mais importância do que aquela que merecem, o tempo passa e aumenta o risco de que o FEEF, que se financia nos mercados com garantia dos Estados, comece a pagar taxas de juro mais elevadas, custos que irá transferir, posteriormente, para os Estados a que destina as "ajudas", como é o nosso caso. Na verdade, pese embora este ser um dos melhores conselhos dos últimos tempos, é difícil encontrar "outros parâmetros" que a tecnocracia financeira consiga entender.

Mas não há crise que mate a ironia. Já não são os "parâmetros" económicos e financeiros que preocupam a Standart & Poor's. São as questões que o Governo - estando mais próximo e não sendo, espera-se, um dos dedos invisíveis do capitalismo - não consegue ver. No atual quadro de resgate financeiro, de vontades discordantes dos governos europeus e de funcionamento duvidoso da União, a S&P olha para a pressão que está a ser exercida sobre Portugal como um risco que pode levar ao desastre, como uma ameaça tão perigosa ou ainda mais que os desvios à ortodoxia orçamental.

De nada serve a Mário Draghi pedir aos investidores internacionais e à banca global que "esqueçam" as análises das agências de rating. Como de nada serve Vítor Gaspar vir a terreiro dizer que não encontra "fundamentação" técnica para a descida de notação do nosso país. E o mesmo se diga de Passos Coelho acusar as agências de rating de "estarem a fazer política".

As agências são americanas, é um facto, e a sua intervenção sempre deixou margem para dúvidas em tudo o que se relacionava e relaciona com a criação e manutenção do euro. Mas não é menos verdade que, em economia, nada é só e apenas "técnico". O rigor de Gaspar pode ser essencial para transmitir aos mercados financeiros, uma imagem de seriedade e confiança, a fim de restabelecer níveis de credibilidade essenciais ao País. Mas é um fator manifestamente insuficiente. São necessárias políticas de crescimento e de esperança. E, acima de tudo, dispensam-se medidas de pressão social acessórias e inúteis. Esta é uma verdade que o Governo parece não entender, embora "até as agências de rating" o percebam.

E é neste quadro que surge esta revisão das leis laborais. Para quem não tem como modelo de mundo a sociedade indiana ou chinesa - ou angolana, ou russa, ou mesmo norte-americana -, onde o preço do "sonho" de alguns é (passem o exagero e as muitas diferenças entre todos eles) a eventual miséria sem assistência para muitos; para quem tem como paradigma de desenvolvimento económico e social a Velha Europa, ainda que nas suas versões mais liberais, e dando já de barato as muitas cedências inevitáveis ao novo quadro económico e financeiro em que vivemos; para quem tem esta visão do mundo, a atual revisão das leis do trabalho peca, definitivamente, por excessiva. Se estamos a sair de um sistema demasiado rígido e protecionista, em que era difícil livrarmo-nos de um trabalhador "bandido" (que os há), estamos agora claramente a mergulhar no paraíso dos patrões "bandidos" (que também não faltam). Um "azar", consagrado por lei, para quem neles tropeçar.

Mas, para além de tudo isto, esta revisão das relações de trabalho surge também como um fator desnecessário, porque, nesta altura, evitável e dispensável, de agravamento da recessão. A simplificação dos despedimentos, uma ameaça enorme, na atual conjuntura, para milhares de famílias, a par do corte drástico das prestações sociais, que transforma o desemprego num mergulho quase imediato na miséria, não pode deixar de ter efeitos a nível da retração do consumo e da economia.

Tudo isto se justifica em nome da procura, urgente, de maior competitividade económica? É muito duvidoso. Parece ser cada vez mais claro que há uma agenda ideológica em todas estas propostas, um programa que se afasta cada vez mais da social-democracia e ainda mais da democracia-cristã. Que dá uma clara prioridade à componente económica, com sacrifício das dimensões sociais e éticas, mas que está também disponível para sacrificar a eficácia económica quando isso se mostra inevitável.

O Governo não está apenas a esticar a corda, parece apostado em parti-la. Ou, então, ainda não percebeu o que está a acontecer. Ao contrário do que acontece com a Standart & Poor's, que não só já percebeu como tirou também as devidas ilações económicas do que se está a passar. Aquelas de que Gaspar, não aceitando a substância, percebe muito bem a forma: o risco de desemprego generalizado e de conflito social, resultantes de uma austeridade sem perspetivas de crescimento, colocam Portugal numa zona de alto risco, levando a nossa dívida pública para o nível do "lixo", do "investimento especulativo". Diz Passos Coelho que a S&P está a "fazer política". Pois sim... é bom que ele comece a fazê-la também. Foi para isso que os portugueses votaram nele para primeiro-ministro. Para que encontre outros "parâmetros" capazes de contrariar as S&P desta vida. A revisão laboral não é, seguramente, um desses "parâmetros".


IN "VISÃO"
19/01/12

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