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O que foi que não vimos?
Como sabemos, as mentiras duram mais tempo do que o mentiroso. Trump pode desaparecer, mas o trumpismo vai continuar
Há mais de 100 anos, H. G. Wells, o autor britânico que gostava de tentar adivinhar o futuro e olhava para o exercício da profecia com um espírito científico, escreveu algo que merece, mais do que nunca, ser lembrado nos dias de hoje: “Tudo o que vai acontecer já está à vista – desde que se tenha olhos para o ver.” Sabendo que seria impossível prever tudo o que possa ocorrer, o homem que, mesmo assim, visionou a existência da televisão, do laser e da engenharia genética, entre outros avanços tecnológicos, deixou um alerta para quando nos sentimos surpreendidos com algo com que não contávamos: “Em vez de perguntar ‘quem poderia ter pensado nisso?’, temos antes de nos questionar sobre ‘o que foi que não vimos?’”
Quando, no dia 6 de janeiro, perante a invasão do Capitólio por parte dos apoiantes de Trump, muitos ficaram surpreendidos com o estado a que chegou a democracia americana, é a essa pergunta de H. G. Wells que deviam ter recorrido, em primeiro lugar: o que foi que não vimos? Mas não só. Também poderiam ter questionado o que foi que não leram, o que foi que não ouviram, por que razão, apesar de tantos avisos, se recusaram a acreditar no que estava mesmo a ocorrer à frente dos seus olhos, insistindo em olhar para o lado.
A verdade é que, durante quase quatro anos, foram muitos os que cederam à tentação de “normalizar” Donald Trump, aceitar todos os seus ataques à democracia como se fossem simples retórica e acreditar que a sua insistência na descredibilização das instituições era apenas produto de um espírito maníaco e egocêntrico – mas cujo perigo terminava aí, sem consequências mais graves.
A partir de certa altura, em muitos outros países, houve também quem começasse a ganhar notoriedade por seguir, exatamente, as pisadas do homem instalado na Casa Branca, replicando, com o mesmo grau de mentiras, copiando a mesma ânsia de ir contra o “sistema” e a mesma escolha de “inimigos”. Sempre com o objetivo de provocar divisões, estimular a raiva e abalar o próprio conceito de verdade, como se todos os números e evidências que alguém apresentasse – fosse ele um eminente académico, um especialista reconhecido ou uma instituição insuspeita – fossem fruto de uma qualquer cabala ou de uma conspiração oculta e terrível perpetrada por mentes obscuras.
No entanto, apesar de tudo o que foi ocorrendo – e tantas vezes denunciado por jornalistas e organismos independentes –, no dia em que, após semanas a gritar que lhe tinham roubado as eleições, Donald Trump fez ouvir a sua voz para incitar à invasão do Capitólio, ainda houve muitos a fazer a “outra” pergunta de H. G. Wells: “Quem é que poderia ter pensado numa coisa destas?”
Quando existem dezenas de milhões de americanos que continuam a concordar com a invasão do Capitólio, porque acreditam que as eleições foram “roubadas”, é porque o grau de alienação e de crença em verdades-alternativas já ultrapassou todos os limites. Significa acreditar, por exemplo, que milhares de funcionários, dirigentes administrativos, líderes políticos de vários partidos e juízes conspiraram entre si, num país com 50 estados, para viciar os resultados de uma eleição.
Como sabemos, as mentiras duram mais tempo do que o mentiroso. Trump pode desaparecer, mas o trumpismo vai continuar. Basta olhar à nossa volta para o perceber…
IN "VISÃO" -14/01/21
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