Crianças com futuros
estranhos e incertos
Nos limites surgem sempre oportunidades. O futuro
não pode permitir que esta geração que está agora a nascer, ou que está
a viver os seus primeiros anos de experiência num mundo cheio de
incerteza, possa ficar amputada de direitos fundamentais.
O nosso corpo tem limites na sua
sobrevivência se não existirem decisões que sejam históricas nas
relações entre saúde pública e estabilidade das economias. As relações
entre a família da escola e da comunidade necessitam de maior atenção
quanto ao futuro próximo e distante porque podemos estar perante a
possibilidade de uma grave situação humanitária sem precedentes. No
entanto, e apesar de um cenário mundial muito preocupante, o ser humano
dispõe de recursos gigantescos de adaptação biológica e social para
saber ultrapassar obstáculos, como sempre, e de forma cíclica, aconteceu
na sua evolução ao longo de milhares de anos. Nos limites surgem sempre
oportunidades. Será uma questão de saber explorar essas potencialidades
e colocá-las ao serviço de todos num processo conjunto de reerguer as
situações atuais de uma crise que também é existencial. Ter as crianças
fisicamente ativas e diminuir o tempo de exposição face aos écrans é um
objetivo essencial na convivência em família. Não deve ser esquecido o
brincar e ser ativo, principalmente até aos 7/8 anos de idade. A
evidência científica demonstra os efeitos benéficos destas atividades
(lúdicas e motoras) em vários domínios, dos quais se devem destacar a
formação das conexões cerebrais e as vias neurais, estabelecendo as
bases de como o cérebro se desenvolverá ao longo da vida.
A conquista desta cultura motora, fundamental nestas idades,
apresenta uma relação direta com os níveis de atividade física
alcançados depois da puberdade e ao longo da adolescência, para evitar
um excesso de sedentarismo e desordens mentais.
A decadência física e motora observada nas últimas décadas na
infância é proporcional à sedução progressiva das crianças na utilização
de dispositivos digitais que as tornam muito passivas corporalmente. É
recomendável que os pais aproveitem os fins de semana e período de
férias escolares para construírem rotinas positivas na promoção do
brincar e ser ativo em casa, nas proximidades da habitação e em espaços
ao ar livre e de jogo destinados a crianças. Estas competências motoras
devem ser desenvolvidas desde muito cedo, para que se criem os
pré-requisitos para uma vida saudável no futuro.
Trata-se de desenvolver formas de brincar livre e de atividades
físicas apropriadas a estas idades, sem ser necessário uma visão
demasiadamente especializada. O brincar é compreendido como um direito
natural e, consequentemente, Humano! Brincar é criar vínculo para se
conhecer e dar-se a conhecer, através de um comportamento exploratório,
num cenário de jogo incerto e inesperado. É igualmente uma “atitude
mental”, capaz de salvar a loucura em que as crianças e os adultos estão
mergulhados nos tempos que correm. Brincar é uma boa solução para
muitos males. É a loucura do corpo que des(conhecemos), aprendendo a
descobrir e combater o aparente equilíbrio do seu funcionamento interno e
os fenómenos imprevisíveis externos que o vão influenciando ao longo do
seu desenvolvimento.
É uma relação complexa de interações que implica o uso do movimento
do corpo (motricidade), em conjunto com as emoções, cognição e relações
sociais, com tonalidades diferenciadas ao longo das diferentes etapas
evolutivas. O brincar e ser ativo é uma ferramenta robusta para lidar
com situações difíceis. Não só a ação motora e lúdica, mas também as
perceções, representações, tomadas de decisão e dinâmicas simbólicas que
estão associadas ao fenómeno. Aprender a mover o corpo significa
adquirir mais confiança, bem-estar, autoestima e superação,
independentemente do contexto de ação. Aprender a mover o corpo implica
atividade motora e ao mesmo tempo a sua escuta (auto- regulação). Para
as crianças brincarem e serem ativas é necessário tempo e adultos
emocionalmente disponíveis (não apressados) para as ouvirem sobre muitas
coisas que têm para nos revelarem sobre as sua vidas, motivações,
imaginários e representações.
O brincar vem de dentro, brotando imaginação e fantasia como um tempo
e num tempo próprio de ser criança. Somos pobres porque não aprendemos a
brincar e muitas vezes somos nós próprios (adultos) que brincamos sobre
o direito de brincar. Por conveniência adulta, este tipo de
comportamento é por vezes silenciado, bloqueado e maltratado, por ser
considerado perda de tempo, não produtivo e secundário. Forças poderosas
se levantam para ter crianças agitadas ou adormecidas com necessidades
de dependência de medicação e tecnologias.
É urgente acordar para perceber a manipulação subtil exercida sobre a
forma como a existência da infância é comercializada e silenciada. O
futuro não pode permitir que esta geração que está agora a nascer ou que
está a viver os seus primeiros anos de experiência num mundo cheio de
incerteza, possa ficar amputada de direitos fundamentais de
desenvolvimento saudável e com confiança num futuro mais solidário.
* Investigador da Faculdade de Motricidade Humana (Universidade de Lisboa)
IN "i"
28/07/20
.
Sem comentários:
Enviar um comentário