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* Economista e Professor do ISCTE.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
29/10/19
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O salário mínimo não é tudo
O programa de governo faz
o que o programa eleitoral do PS não fez: fixou uma meta para o salário
mínimo no final da legislatura (750 euros). Como é costume, a meta está
a ser criticada à esquerda e à direita,
por ser pouco ambiciosa ou demasiado voluntarista. Não há critérios
objectivos para tirar isto a limpo. Uma coisa é certa: faz pouco sentido
discutir o salário mínimo deixando de fora tudo o resto.
A
existência de um salário mínimo tem várias justificações. A primeira
delas é uma questão de princípio e é simples: quem trabalha não deve ser
pobre. Dois séculos e meio depois da primeira revolução
industrial, de avanços ímpares na ciência e na tecnologia, da construção
de sociedades mais justas e mais democráticas, não é admissível que
haja quem trabalha recebendo em troca um salário que não confere
dignidade à sua existência.
No
mundo abstracto dos modelos económicos básicos (aqueles que se ensinam
nas cadeiras introdutórias da faculdade), a existência de um salário
mínimo é um erro. Assumindo que todos os agentes económicos decidem de
acordo com os preços de mercado, que ninguém tem a capacidade de os
influenciar, que os preços reflectem o valor das mercadorias em causa e
que o trabalho é uma mercadoria como outra qualquer, não há motivo para o
Estado impor um nível mínimo de remuneração. Segundo esta perspectiva, o
salário em vigor no mercado, seja ele qual for, reflecte apenas a
vontade das partes: é o valor que os trabalhadores estão disponíveis
para receber em troca de uma certa quantidade de trabalho e que os
empregadores estão dispostos a pagar em troca do valor adicional que
esse trabalho gera. Ao fixar um salário acima do equilíbrio de mercado o
Estado está a interferir na liberdade individual, impedindo a criação
de postos de trabalho sob condições que seriam aceites tanto pelos
assalariados como pelos empregadores envolvidos.
Para além de
ignorar o princípio da dignidade do trabalho, há vários problemas
naquele modelo simplista. Primeiro, coloca em pé de igualdade quem
depende da venda da sua força de trabalho para viver face a quem vive
dos lucros. A diferença é que os primeiros não vivem sem um salário,
enquanto os segundos, em geral, podem passar sem os lucros decorrentes
da produção adicional que aquele trabalhador geraria, o que os coloca em
posições negociais muito distintas. Segundo, raramente as
economias se encontram em situação de pleno emprego. Isto aumenta ainda
mais o poder negocial de quem emprega, face a quem concorre com muitos
outros desempregados por um dado posto de trabalho. Terceiro,
em situações de crise, a ausência de um nível mínimo de salário pode
acelerar e acentuar a recessão, pois uma queda abrupta dos salários
reduz a procura, penalizando por sua vez a actividade económica. Por
fim, a facilidade em contratar pessoas com salários muito baixos cria
incentivos para o investimento em actividades baseadas em mão-de-obra
barata, fomentando assim especialização das economias em sectores que
geram pouco valor acrescentado e que são pouco promissoras a prazo.
Tudo
isto justifica que se estabeleçam níveis mínimos para os salários e se
actualizem esses mínimos com frequência. Mas há duas preocupações
adicionais a ter em conta.
Por um lado, se os salários são uma
referência de dignidade e uma fonte de procura, eles não deixam de ser
um custo para as empresas. Quando essas empresas estão expostas à
concorrência internacional, aumentos excessivos de salários podem pôr em
causa a sua sobrevivência. Acresce que parte da procura induzida pelo
aumento dos salários corresponde a produtos importados. Os salários são
assim uma variável relevante tanto para as exportações como para as
importações. Num país que passou por três períodos de grandes
desequilíbrios externos em menos de meio século, como é o caso de
Portugal, há motivos acrescidos para que os aumentos salariais sejam
feitos de forma gradual.
Por outro lado, o salário mínimo
não é a única forma de garantir uma vida digna a quem vive do seu
trabalho. Também não é o único modo de equilibrar o poder negocial das
partes de uma relação laboral, nem de promover uma distribuição mais
justa dos rendimentos e da riqueza, nem ainda de assegurar uma evolução
sustentável da procura interna. É longa a lista de instrumentos de
política relevantes neste contexto: o nível e duração do subsídio de
desemprego, as possibilidades legais de despedimento, o enquadramento
institucional da negociação colectiva, os poderes reconhecidos aos
sindicatos, a tolerância face a diferentes formas de trabalho precário,
os impostos directos e indirectos, as garantias de rendimento na doença e
na velhice, as condições de acesso à saúde e à educação, o custo e a
disponibilidade de transportes públicos, as formas e as regras de
provisão de habitação, entre outros.
O papel do Estado Social é
muitas vezes descurado no debate sobre a relação entre dignidade do
trabalho, salários e sustentabilidade das contas externas. Muito
do sucesso histórico dos países escandinavos passou por aqui: ao
assegurar serviços públicos universais e de qualidade - na educação, na
saúde, nos transportes, na habitação, na protecção contra a doença, a
invalidez e a velhice - o Estado reduziu significativamente o valor do
salário necessário para assegurar uma vida digna aos trabalhadores,
permitindo assim conter os custos das empresas com o factor trabalho. Claro
que isto se traduziu em impostos mais altos para todos. Mas o esforço
fiscal necessário para pagar os serviços públicos foi distribuído de
modo a promover a redução das desigualdades sem penalizar as
exportações.
A mensagem é clara: para aumentar a dignidade do
trabalho, a coesão social e a capacidade da economia para lidar com as
pressões externas é preciso ir muito além do aumento salário mínimo.
Quem reduz o seu discurso a este tópico deixa de fora muito do que
importa discutir.
* Economista e Professor do ISCTE.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
29/10/19
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