Afro-descendentes
(portugueses e imigrantes):
distinguir para unir
As vantagens decorrentes da nacionalidade não incluem o reconhecimento da identidade política dos afro-descendentes como cidadãos portugueses.
No contexto do combate ao racismo institucional, pessoal e
interiorizado, a Organização das Nações Unidas (ONU) decretou a Década
Internacional dos Afro-descendentes (2015-2024). Conquanto
afro-descendente se refira grosso modo a qualquer cidadão
proveniente de África e no caso português possa incluir muitas
categorias de pessoas (e.g. retornados), dos objetivos da Década decorre
que afro-descendente é um eufemismo de cidadão negro ou mestiço que
viva em qualquer parte do mundo. Apesar da resolução (68/237) da ONU
associar privilegiadamente afro-descendente aos cidadãos nacionais dos
diferentes Estados mundiais, a resolução também se refere aos migrantes.
Como categoria política, em Portugal afro-descendente refere-se às
pessoas negras e mestiças com nacionalidade portuguesa, assim como aos
migrantes provenientes de África, sobretudo das ex-colónias portuguesas
(e.g. Angola, Guiné-Bissau, Cabo-Verde, Moçambique).
Mau grado a aparente clareza conceptual, em Portugal o racismo
institucional tem implicado a compreensão dos afro-descendentes
portugueses como imigrantes e a preservação do direito de sangue (jus sanguinis)
como critério de atribuição da nacionalidade. Neste último caso, há
inúmeros afro-descendentes imigrantes cujo direito à nacionalidade tem
sido coartado.
Embora aqueles factos possam ter a mesma causa — o
racismo embebido nas instituições portuguesas —, é conveniente não
confundir, como faz o Estado português, duas realidades
jurídico-políticas distintas: (a) a dos afro-descendentes portugueses,
tratados como imigrantes, e (b) a dos afro--descendentes imigrantes que
lutam pela alteração da lei da nacionalidade.
Apesar de em ambos os casos serem racialmente discriminados, uma
coisa é a situação jurídico-política dos afro-descendentes portugueses,
cujos direitos e deveres como cidadãos nacionais são frequentemente
sonegados; outra coisa é a situação de afro-descendente imigrante cujo
direito à nacionalidade portuguesa tem sido severamente restringido. Com
efeito, por um lado, o facto de os afro-descendentes imigrantes
adquirirem a nacionalidade portuguesa não os livra de continuarem a ser
tratados como estrangeiros, tal como acontece atualmente com os
afro-descendentes portugueses.
As vantagens decorrentes da nacionalidade
não incluem o reconhecimento da identidade política dos
afro-descendentes como cidadãos portugueses. Por outro lado, o facto de o
Estado português confundir os dois estatutos, tratando os
afro-descendentes portugueses como imigrantes, não justifica que no
diálogo com os representantes do Estado português os afro-descendentes
portugueses consintam em ser tratados na base daquela confusão. Tanto
mais que esta remete em última instância para a premissa política de que
os afro-descendentes não podem ser portugueses.
Por exemplo, o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita,
referiu-se apenas aos imigrantes quando se pronunciou sobre o relatório
do Comité Europeu contra a Tortura relativo à discriminação racial nas
prisões, como se não houvesse afro-descendentes portugueses nas prisões.
Embora a Constituição portuguesa não permita a identificação dos
portugueses afro-descendentes enquanto grupo racialmente discriminado,
omitir que a violência policial baseada na discriminação racial também
incide sobre afro-descendentes portugueses implica que a intenção de
eliminar aquela violência não afeta a representação política dos
afro-descendentes como estrangeiros (portugueses imigrantes e
imigrantes). Doravante o Estado português poderá reportar que os
imigrantes não são vítimas de violência policial, mesmo que os
afro--descendentes portugueses continuem a ser vistos como imigrantes e a
lei da nacionalidade, em vez de baseada no jus soli, continue alicerçada no jus sanguinis.
Por
isso, se a discriminação racial explica por que razão os
afro-descendentes imigrantes dificilmente adquirem a nacionalidade
portuguesa, e os afro-descendentes portugueses são tratados como
imigrantes, a não consideração da diferença jurídico-política no combate
àquela discriminação mimetiza (e corrobora) a confusão
institucionalizada do afro-descendente português-imigrante. Este
mimetismo tem, todavia, três efeitos perversos.
Em primeiro lugar,
opõe afro-descendentes (portugueses e imigrantes), de tal maneira que
os afro-descendentes portugueses, com o direito e o dever de
contribuírem para suprimir a discriminação de que são alvo, podem ser
vistos como insensíveis aos problemas sociais, jurídicos e políticos dos
afro-descendentes imigrantes. E, inversamente, os afro-descendentes
portugueses podem considerar que os afro-descendentes imigrantes
bloqueiam, ainda que involuntariamente, a procura de soluções para os
problemas específicos dos primeiros. Com efeito, enquanto imigrantes não
aceitam, e com razão, colaborar na procura de soluções para os
problemas de uma classe à qual não pertencem, a dos afro--descendentes
portugueses.
Em segundo lugar, implica a ausência de fins claros
no diálogo entre os representantes do Estado português e os
afro-descendentes, tornando-o completamente improdutivo. Sem qualquer
ordem sobrepõem-se argumentos sobre a lei da nacionalidade, relativa aos
afro-descendentes imigrantes, aos argumentos sobre a falta de
reconhecimento dos direitos inerentes ao usufruto da nacionalidade
portuguesa, relativa aos afro-descendentes portugueses.
Em terceiro lugar, mantém o statu quo,
i.e. o atual critério para a atribuição da nacionalidade e a menoridade
política e humana dos afro-descendentes portugueses. Tratados como
imigrantes, sem voz própria nos processos de tomada de decisão política e
pública a nível nacional, o debate e combate contra a sua discriminação
racial continuam a ser travados nas instituições políticas nacionais
(e.g. Parlamento) pelos seus (bem-intencionados) tutores e tutoras.
Não
ignoramos que a distinção entre os afro-descendentes portugueses e
imigrantes é irrelevante do ponto de vista ético. Em ambos os casos há
pessoas que são negativamente discriminadas na base de um critério
inclassificável. Também não ignoramos os debates quer sobre a
pertinência da distinção jurídico-política entre nacionais e imigrantes,
quer sobre o critério da atribuição da cidadania. No primeiro caso,
numa sociedade cosmopolita, tal como Sócrates já sustentava no século V
a.C., “não somos atenienses, nem gregos, mas sim cidadãos do mundo”. No
segundo caso, os direitos de cidadania podem ser independentes da
nacionalidade. Conquanto se possa questionar a fonte da identidade
política, esta ainda depende da nacionalidade. Por isso, os
afro-descendentes imigrantes lutam pela alteração da lei da
nacionalidade e a nacionalidade é um direito humano universal — convém
não esquecer as consequências políticas, jurídicas e éticas para os
judeus e ciganos da privação da nacionalidade alemã no III Reich.
De
acordo com essas premissas, o diálogo entre os afro-descendentes (como
particulares ou membros de organizações da sociedade civil) e o Estado
português deveria ser regulado pela diferença jurídico-política entre
afro-descendentes portugueses e imigrantes, doravante transformada em
critério de determinação das condições para aquele diálogo. Por exemplo,
nesse diálogo os problemas dos afro-descendentes portugueses e
imigrantes deveriam ser tratados em reuniões separadas. Similarmente,
quando se discutem os problemas dos afro-descendentes portugueses,
tratados como imigrantes, o diálogo não deveria ser mediado pelo
alto-comissário das Migrações, nem deveria realizar-se em instituições
políticas para imigrantes (e.g. o Centro Nacional de Apoio à Imigração,
CNAI). Tal não significa que se houver um consenso entre os
representantes do Estado português e os afro-descendentes portugueses o
alto-comissário não possa estar presente como observador. Em
contrapartida, se se discutem os problemas dos afro-descendentes
imigrantes, a presença do alto-comissário das Migrações é
imprescindível. Tal não significa também que os afro-descendentes
portugueses sejam excluídos dessa discussão.
Em suma, admitindo que o Estado português está fortemente empenhado em
concretizar o principal objetivo da Década Internacional dos
Afro-descendentes — o combate contra a discriminação racial —, preservar
ou eliminar a confusão jurídica e política entre afro-descendentes
portugueses e imigrantes é um critério de avaliação daquele empenho.
IN PÚBLICO"
28/03/18
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