25/12/2011

PETER SINGER


A morte de cada um

Dudley Clendinen, escritor e jornalista, tem esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença degenerativa terminal. Este ano no The New York Times, escreveu comoventemente sobre como goza a sua vida e sobre o seu plano para terminá-la quando, como ele o diz, “a musica parar – quando não for capaz de fazer o nó da gravata, contar uma história engraçada, passear o meu cão, falar com Whitney, beijar alguém especial ou escrever linhas como esta.”

Um amigo disse a Clendinen que este precisaria de comprar uma arma. Nos Estados Unidos, uma pessoa pode comprar uma arma e pôr uma bala no seu próprio cérebro sem infringir quaisquer leis. Mas se for uma pessoa respeitadora da lei que já está demasiado doente para comprar uma arma, ou para usar uma, ou se disparar sobre si não lhe parecer um modo pacífico e digno de terminar a vida, ou se simplesmente não quiser deixar uma sujeira para outros limparem, o que deve fazer? Não pode pedir a outra pessoa que dispare sobre si e, em muitos países, se disser ao seu médico que está farto e que gostaria que ele ou ela o ajudasse a morrer, estará a pedir ao seu médico para cometer um crime.

No mês passado, um painel de peritos da Royal Society do Canadá, presidido por Udo Schüklenk, professor de bioética na Universidade de Queens, publicou um relatório sobre tomadas de decisão em fim de vida [documento em inglês]. O relatório fornece uma argumentação forte para permitir que os médicos ajudem os seus doentes a morrer, desde que os doentes estejam capazes e solicitem livremente essa assistência.

A base ética do argumento do painel é não tanto o acto de evitar o sofrimento desnecessário de doentes terminais, mas mais o valor básico da autonomia individual ou autodeterminação. “O modo como morremos”, conclui o painel, “reflecte a nossa noção do que é importante tal como o fazem outras decisões centrais nas nossas vidas”. Num estado que protege os direitos individuais, então, decidir como morrer deveria ser reconhecido como um tal direito.

O relatório também oferece uma revisão actualizada de como a assistência dos médicos na terminação da vida está a funcionar nos “laboratórios vivos” – as jurisdições onde é legal. Na Suíça, bem como nos estados norte-americanos do Oregon, Washington e Montana, a lei agora permite aos médicos, a pedido, prescrever a um doente terminal um medicamento que lhe trará uma morte pacífica. Na Holanda, na Bélgica e no Luxemburgo, os médicos têm a opção adicional de responder ao pedido do doente através da administração de uma injecção letal.

O painel estudou relatórios de cada uma destas jurisdições, com a excepção de Montana (onde a legalização da morte assistida aconteceu apenas em 2009, não estando disponíveis ainda dados fiáveis). Na Holanda, a eutanásia voluntária foi responsável por 1,7% de todas as mortes em 2005 – precisamente o mesmo nível que em 1990. Além disso, a frequência de terminar a vida de um doente sem um pedido explícito do doente caiu para metade durante o mesmo período, de 0,8% para 0,4%.

Na verdade, vários estudos sugerem que terminar a vida de um doente sem um pedido explícito é muito mais comum noutros países, onde os doentes não podem pedir legalmente a um médico para terminar as suas vidas. Na Bélgica, embora a eutanásia voluntária tenha subido de 1,1% de todas as mortes em 1998 para 1,9% em 2007, a frequência de terminar a vida de um doente sem um pedido explícito caiu de 3,2% para 1,8%. No Oregon, onde a Death with Dignity Act [Lei da Morte com Dignidade] vigora há 13 anos, o número anual de mortes medicamente assistidas ainda não atinge 100 por ano e o total anual em Washington é ainda mais baixo.

O painel canadiano concluiu então que há indícios fortes para refutar um dos maiores medos que os oponentes da eutanásia voluntária ou da morte medicamente assistida frequentemente exprimem – que é o primeiro passo num caminho que levará a uma matança médica mais generalizada. O painel também considerou inadequadas várias outras objecções à legalização e recomendou que a lei no Canadá seja alterada para permitir o suicídio medicamente assistido e a eutanásia voluntária.

Estudos mostram que mais que dois terços dos canadianos apoiam a legalização da eutanásia voluntária – um nível que se tem mantido por várias décadas. Portanto não surpreende que o relatório tenha recebido forte apoio nos meios de comunicação convencionais do Canadá. O que é mais intrigante é a resposta fria dos partidos políticos do país, sem que algum tenha mostrado vontade de apoiar reformas legais nesta área.Há um contraste similar entre a opinião pública e a (in)acção política noutras paragens, incluindo o Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e vários países europeus continentais. Porque é que, quando se trata de morrer, as instituições democráticas têm tantas dificuldades em traduzir a vontade das pessoas em legislação?

Suspeito que, acima de tudo, os políticos convencionais temam as instituições religiosas que se opõem à eutanásia voluntária, mesmo que os crentes individuais não sigam muitas vezes a doutrina dos seus líderes religiosos. Sondagens em vários países mostraram que uma maioria de católicos, por exemplo, apoia a legalização da eutanásia voluntária. Mesmo na fortemente católica Polónia, mais pessoas apoiam hoje a legalização que aquelas que se lhe opõem.

Em qualquer caso, as crenças religiosas de uma minoria não deviam negar a indivíduos como Dudley Clendinen o direito de terminar as suas vidas do modo que escolherem.

Tradução de António Chagas/Project Syndicate

Professor de bioética na Universidade de Princeton e professor Laureado na Universidade de Melbourne

IN "PÚBLICO"
19/12/11
.

Sem comentários: