Negociar na China:
nenhum preço
é demasiado baixo
Quando em 1989 visitei Xangai pela primeira vez,
corria a história de um francês encontrado sem roupa na Praça de
Tianamen em Pequim vociferando para quem passava.
De imediato subjugado e recambiado para Paris, o desespero desse
francês com o putativo nome de Pierre culminava uma sequência de nove
meses de negociações de um grande projeto em que se vira enredado na
arte negocial chinesa. A história de Pierre e dos momentos de exultação e
desânimo por que passou são uma espécie de cartilha para o processo de
negociação na China e ainda hoje os discuto com os meus alunos. Mais do
que ilustrar uma hábil forma de negociar, o caso evidencia os erros da
impreparação e do desconhecimento de um mercado onde é preciso saber
muito mais do que a economia e umas pinceladas de cultura.
Também eu me revejo, vezes sem conta, naqueles episódios de desgaste
profundo, de vitórias momentâneas, de escrutínios imprevistos. Ainda há
poucos meses, numa noite fria de Fevereiro, exausta de uma longa viagem
intercontinental, psicológica e fisicamente diminuída pela substancial
diferença horária, já perto da meia-noite, foi quando a minha
contraparte chinesa se decidiu por mais uma ronda de negociações.
Atraída para um jantar de boas-vindas, uma coisa simples entre amigos,
vi pouco a pouco o padrão repetir-se à medida que o jantar avançava.
Dizem-me como de costume que o meu trabalho é extraordinário, o quanto
apreciam o meu esforço e ainda mais a instituição que represento e,
claro, a nossa proposta é excelente. A um dado momento que eu já consigo
prever, essa mesma proposta vai ser meticulosamente desconstruída
visando a obtenção de melhores condições e sobretudo de melhor preço.
Uma experiência cansativa que não se recomenda a iniciados.
Para os chineses, obter um melhor preço é quase uma obsessão, uma
espécie de desporto nacional, uma questão de face. Foi pois com alguma
surpresa que vi dois alunos meus de doutoramento na China
apresentarem-me propostas de investigação sobre duas indústrias
diferentes debatendo-se com problemas de falta de qualidade nos produtos
e onde é apontada, entre outras, uma causa comum: nenhum preço é
demasiado baixo. Esta frase simples cortou-me o coração. Explicaram-me
que a intenção de cada um dos fornecedores na cadeia é conseguir sempre
um melhor preço a montante até ao limite do impossível, cada um deles
sacrificando a qualidade. Vocês também sentem e reconhecem esse
problema? E como se lida com ele? Perguntei. A resposta não foi muito
conclusiva, mas pelo meio referiram uma etapa que eu conheço bem: quando
uma parte argumenta vezes sem fim a impossibilidade de baixar o preço, a
outra pede-lhe a estrutura de custos que em seguida irá ser destruída.
A primeira vez que passei por esta experiência foi há muitos anos,
por volta de 1991. Numa primeira troca de docentes entre a universidade
de uma pequena cidade do Sul da China e a universidade de Macau em que
eu fui a única voluntária, passei dois meses a ensinar contabilidade
nessa cidade. É preciso reprogramarmos o nosso cérebro para imaginar o
que era o mundo em 1991. Um mundo sem internet e sem redes móveis
generalizadas, mas é preciso muito mais para imaginarmos o que era a
China em 1991. Nessa altura um estrangeiro era uma ave rara que era
preciso proteger e controlar. Não podíamos, por exemplo, circular
livremente, nem viver ou fazer compras onde nos apetecesse. Não podíamos
usar a moeda local mas sim FEC (Foreign Exchange Currency), uma espécie
de cupões de circulação limitada.
No meu caso, como se tratava de uma troca e a China começava a abrir,
foi-me atribuído um salário que em princípio seria suficiente para eu
viver naqueles dois meses. Em breve percebi que tal era impossível e
pedi um aumento. O pedido gerou alguma perturbação mas como eu não
desistia foi-me pedido que discriminasse todas as minhas despesas na
antevisão de uma reunião com os responsáveis. Fiquei radiante e passei
algum tempo a preparar uma lista exaustiva que me desse alguma margem de
manobra. A lista teve de ser traduzida e aguardei mais uma semana.
Chegou o dia. Três cabeças debruçadas sobre uma folha de papel
sussurrando misteriosamente. Que me sentasse, a conversa antecipava-se
longa. Sobre a mesa foi-me devolvida a minha lista com as despesas
classificadas em três grupos: as absolutamente necessárias, mas onde eu
poderia adquirir os produtos a um preço inferior; as moderadamente
dispensáveis sobre as quais eu poderia ter alguma opção; e as
absolutamente dispensáveis que eu deveria eliminar. Ao lado da minha
coluna com os preços surgia agora uma nova coluna com os novos preços e
muitos zeros e, surpresa, a soma era exatamente igual ao meu salário.
Hoje olho para este passado com um certo carinho. Esta experiência
traumática haveria de poupar-me muitos contratempos em anos futuros.
Professora na ISCTE Business School e no INDEG-IUL ISCTE Executive Education
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
17/08/14
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