Antibióticos:
a selecção natural
e a falência do capitalismo
Estamos à beira de uma era pós-antibiótica, em que pequenos ferimentos e infecções vulgares podem voltar a matar. Porquê? Porque os antibióticos não dão dinheiro.
A OMS relançou o tema no início de 2014, mas
as suas causas não são simples nem fáceis de resolver. Vivemos na
confluência explosiva de dois movimentos: a habilidade natural das
bactérias para iludirem os antibióticos e uma relutância generalizada
das empresas farmacêuticas em investirem no desenvolvimento de novos
fármacos.
A capacidade das bactérias para resistirem aos antibióticos foi
evidente desde o princípio mas, até aos anos 1970, o fenómeno foi visto
com complacência: haveria sempre novas drogas para compensar as
estratégias de resistência desenvolvidas pelas bactérias.
Esse optimismo tipicamente baby-boomer morreu estrondosamente logo a
seguir. Nos anos 1980 algo de novo apareceu na terra mínima das
bactérias: nas revistas científicas começou a falar-se de “superbugs” –
microrganismos multi-resistentes, invulneráveis a grupos inteiros de
antibióticos desenvolvidos especificamente para os combater.
Alguns deles são velhos conhecidos. O bacilo da tuberculose, por
exemplo, desenvolveu estirpes que são resistentes a todas as drogas
disponíveis: é como se voltássemos aos tempos da Montanha Mágica. A Escherichia coli
(ou “colibacilo”, como lhe chamavam as nossas avós), responsável pela
maioria das infecções urinárias, antes sensível a tudo, tem hoje mais de
mil variantes resistentes a boa parte dos antibióticos disponíveis. E o
mais conhecido “superbug” da actualidade, o Staphylococcus aureus
(um velho companheiro, presente em 30% dos nossos narizes), começou
logo nos anos 1940 a exibir resistência à penicilina e quando, em 1959,
foi lançada a meticilina (o primeiro antibiótico especificamente
desenvolvido para contrariar uma resistência), bastaram três anos para
surgirem estirpes resistentes à droga anti-resistência. Chamamos a essas
estirpes MRSA (methicillin-resistant Staphylococcus aureus) e o MRSA é hoje o principal causador de infecções adquiridas nos hospitais e, cada vez mais, na comunidade.
Evidentemente, subestimámos as bactérias. Estes minúsculos seres, que
existem há mais de 3,8 mil milhões de anos e correspondem a 50% da
biomassa total do planeta, desenvolveram, como qualquer outro organismo
vivo, mecanismos de resposta às pressões selectivas do meio ambiente – e
sobretudo às pressões a que foram sujeitos por nós, de forma
particularmente violenta e genocida, nos últimos 80 anos. Não é só a
utilização maciça de antibióticos pela medicina (nem mesmo a sua má
utilização, de resto o principal factor de indução de resistências). Os
antibióticos também são extensivamente usados na agricultura e a
biosfera está saturada deles.
Além disso, os mecanismos de resistência são naturais e muito
antigos. O estudo filogenético dos genes que codificam a resistência aos
antibióticos sugere que alguns deles, como os que codificam as
beta-lactamases (enzimas que destroem a penicilina), podem ter dois mil milhões de anos.
Os antigos egípcios já tinham o hábito de aplicar bolor de pão nas
feridas infectadas. E velhas histórias sobre as propriedades
anti-infecciosas das areias vermelhas da Jordânia conduziram à
descoberta do Actinomicete,
a bactéria responsável pela produção de actinomicina (uma das
ferramentas do nosso arsenal terapêutico). A era antibiótica limitou-se a
intensificar estes mecanismos antigos.
Mas não é só a resiliência das bactérias que explica a situação a que
chegámos. Acontece que as empresas que desenvolviam e produziam
antibióticos deixaram de querer fazê-lo. Desde os anos 1980 que as
grandes companhias farmacêuticas europeias e americanas desinvestiram no
sector. Unidades inteiras foram encerradas e as recentes fusões de
alguns dos gigantes da indústria só intensificaram o fenómeno.
Porquê? Porque os antibióticos se tornaram vítimas do seu próprio
sucesso. Um bom antibiótico mata o agente infeccioso em 7 ou 10 dias – a
pessoa cura-se e não compra mais. Mas os fármacos que dão retorno
financeiro são os que exigem um consumo continuado: antidiabéticos,
anti-coagulantes orais, anti-epilépticos e por aí fora. Drogas para a
vida.
A OMS lançou agora um plano a nível mundial para
tentar reverter esta tendência. Não é líquido que o consiga. Faltam
ingredientes que estiveram presentes no início da era antibiótica e que
são difíceis de replicar.
Quando Alexander Fleming voltou de férias em setembro de 1928 e
descobriu a penicilina, descobriu também que não era fácil extraí-la do
fungo. Quando publicou os seus achados no British Journal of Experimental Pathology em junho de 1929, apesar de assinalar que o “sumo de bolor” matava bactérias como o Streptococcus,
o meningococo e o bacilo da difteria, só de passagem referia o seu
potencial terapêutico. E o primeiro exemplo desse potencial, em 1941 –
um polícia de 43 anos que se ferira num espinho ao podar as rosas do
jardim e desenvolvera abcessos na cara, olhos e pulmões – teve um fim
dramático: o homem recuperou em poucos dias mas as reservas da droga
acabaram e ele acabou por morrer.
Foi a guerra – e o arranque da formidável máquina científica e
industrial americana – que permitiu inverter a situação. Dois
investigadores ingleses, Florey e Heatley, viajaram para os EUA e
contactaram o Department’s Northern Regional Research Laboratory (NRRL),
em Peoria, Illinois, especialista em fermentação. Foi no NRRL que se
fizeram avanços decisivos nas técnicas de cultivo do fungo
que permitiram a produção de penicilina em larga escala. Depois entrou
em campo o Office of Scientific Research and Development (OSRD), criado
para coordenar e orientar a investigação científica para problemas de
defesa nacional. O OSDR mobilizou as grandes companhias (Merck, Squibb,
Lilly, Pfizer) para a produção de penicilina. Alguns meses depois havia
125 companhias a produzir penicilina. O objectivo explícito era dispor
de quantidades adequadas de penicilina para o D-Day – o dia do
desembarque na Europa.
Em março de 1945 a penicilina passou a ser vendida livremente e, em
1949, o preço caíra de 20 dólares para menos de 10 cêntimos por dose.
Os antibióticos não pagam dividendos. Alguém terá de pagar a factura, se não quisermos voltar a ser personagens de Thomas Mann.
IN "OBSERVADOR"
13/01/15
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