23/02/2014

EVA GASPAR

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Próximo resgate?
 Imposto Cadilhe

Muita tinta já correu – e muita mais correrá - a propósito da pré-sentença do Tribunal Constitucional alemão sobre o programa de compra de dívida do BCE, o OMT, cujo mero anúncio em Setembro de 2012 coincidiu com o fim da espiral da crise do euro, fazendo com que muita gente considere hoje que se tratou de um dos maiores e melhor sucedidos “bluffs” dos tempos modernos.

Na opinião dos juízes de Karlsruhe (de seis, pois outros dois votaram vencidos), o BCE ultrapassou o mandato que lhe foi conferido pelos Governos através dos Tratados quando, pela voz de Mário Draghi, assumiu a promessa de fazer tudo para salvar o euro dispondo-se a comprar, de forma ilimitada, títulos de dívida soberana de países do euro confrontados com dificuldades de financiamento.

Na opinião da maioria dos juízes de Karlsruhe, tão pouco serve de atenuante o facto de o BCE ter reservado esse eventual apoio apenas aos Governos que aceitem previamente exigências de consolidação orçamental e de reformas económicas negociadas com os restantes Governos do euro, donos do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), e plasmadas num memorando escrito no quadro de um programa cautelar.

Para os juízes alemães não há, pois, dúvida. Quando o BCE se propõe comprar dívida soberana em quantidades “ilimitadas” não está a fazer apenas política monetária e a combater a fragmentação financeira que faz com que o crédito cedido aos bancos pelo BCE chegue tão mais caro às empresas e famílias da periferia. Em sua opinião, o BCE está também a abrir a porta para que, por seu intermédio, contribuintes de outros países financiem Orçamentos de Estados cujos governos não elegem, redistribuindo por todos os países o risco de insolvência de alguns, em violação da famosa cláusula de não-resgate (no-bailout) dos Tratados e do elementar princípio democrático do “no taxation without representation”.

Ainda assim, o Constitucional alemão reconheceu que, tendo alçada sobre o Bundesbank (que faz parte do sistema de bancos centrais do euro e que foi o único banco central que se opôs ao OMT), não tem jurisdição sobre o BCE. A única instituição que tem o poder de decidir se o banco central europeu violou Tratados europeus é o Tribunal Europeu de Justiça, pelo que lhe transferiu o caso.

Ao mesmo tempo que passou a “bola” para o tribunal do Luxemburgo, Karlsruhe sinalizou, porém, que, numa interpretação restritiva que desfaça cabalmente alguns potenciais mal-entendidos, o programa de compra de dívida (OMT, acrónimo em inglês para Transacções Monetárias Definitivas) pode até ser perfeitamente legal.

E que mal-entendidos são esses? Que na união monetária europeia não pode haver lugar a compras “ilimitadas” de obrigações soberanas, nem a intervenções destinadas a forjar “preços” (taxas de juro) destinadas a fazer crer que um país está melhor do que efectivamente estará, e - mais importante ainda - que, na união monetária europeia, não há lugar a “perdão de dívidas”.

No rescaldo da sentença, muitos escreveram que, nunca tendo sido disparada, a mais poderosa arma do BCE em defesa do euro tinha ficado prematuramente sem munições, e que os eurocépticos alemães&co podiam por o champanhe no gelo porque tinham visto confirmada a sua tese de que, para salvar o euro, os mais básicos direitos - ou seja, não terem de enfrentar o risco de pagar a factura de erros alheios - tinham sido cilindrados. Provavelmente, uns e outros pecam por exagero, mas há algumas conclusões que se podem desde já retirar enquanto se espera pelo veredicto do tribunal europeu.

A primeira é factual: os juízes - juízes alemães! - falaram e os mercados financeiros nem pestanejaram (o que levanta várias questões, desde logo se o anúncio original do OMT terá sido um factor tão decisivo na descida dos juros da dívida dos periféricos). Espanha voltou a colocar dívida a juros historicamente baixos, e Portugal fez uma emissão de três mil milhões de euros a dez anos a uma taxa de 5,11% que, não sendo o “sucesso” de que o país precisa para garantir a sustentabilidade da dívida, confirma a recuperação da confiança dos investidores.

(Porque a memória é tão curta, recorde-se que há precisamente três anos, dois meses antes do pedido de resgate, o Governo socialista “regressou com sucesso ao mercado” com uma emissão também sindicada onde prometeu pagar 6,4% de juros por 3,5 mil milhões  de euros a cinco anos. Se quer manter alguma ligação a um eleitorado informado, António José Seguro tem de ter estes números em mente antes de dizer que 5% é uma taxa “insuportável”. Porque mais insuportáveis são os défices que somam mais insustentabilidade à dívida, não obstante  as taxas de juro de saldo da troika - outro dado que o líder do PS parece desconhecer).

Outra conclusão que, entretanto, se pode tirar é a de que a incerteza sobre a possibilidade de o OMT algum dia ser accionado vai perdurar (18 meses é, em média, o tempo que os juízes europeus demoram a tecer sentenças). Isso desfaz uma das vantagens potenciais para Portugal em aceder a um programa cautelar no pós-troika. E pode ter implicações se, em face de pressões deflacionistas, o BCE quiser avançar com grandes compras de activos, numa versão europeia do “quantitative easing” do Fed norte-americano e do Banco de Inglaterra.

Se respeitar as “linhas vermelhas” identificadas pelo Constitucional alemão, o Tribunal Europeu de Justiça pode fragilizar o “bluff” porque o OMT vai ter de ter limites (no caso da Alemanha, 190 mil milhões de euros de responsabilidade é uma fasquia provável decorrente de uma outra sentença do seu Constitucional sobre o MEE). Em contrapartida, a vantagem de uma interpretação “suprema” é que evita a cacofonia que poderia instalar-se se outros Tribunais Constitucionais fossem suscitados a pronunciar-se sobre o OMT e chegassem a conclusões eventualmente divergentes.

Independentemente do desfecho sobre a legalidade do OMT, a mais certa das incertezas é de que se assista a um reforço da crítica à estratégia de salvamento do euro, especialmente na Alemanha onde, segundo cálculos da associação nacional de contribuintes, os resgates aos países do euro poderão significar 509 mil milhões de euros garantidos por impostos alemães.

Após cinco resgates na Zona Euro, é neste contexto que se deve prestar especial atenção à recente proposta do Bundesbank: à semelhança dos bancos em risco de falência, que terão de bater à porta de accionistas e obrigacionistas e, só em derradeira instância, podem apelar aos contribuintes para os salvar, também os Estados na vertigem da bancarrota devem olhar para os de dentro antes de gritar socorro para os de fora. Na opinião do banco central alemão, países em risco de incumprimento devem, portanto, avançar com impostos extraordinários sobre a riqueza liquída dos seus cidadãos, designadamente taxas pontuais sobre o capital, para tapar buracos de financiamento dos seus Estados. Essa opção deve também ser explorada para tornar dívidas públicas sustentáveis.

Curiosamente, o Bundesbank não está a inovar: o FMI já explorou essa via, utilizada por vários países, designadamente em contextos de pós-guerra; e esta é uma opção há muito defendida por Miguel Cadilhe. Não é, pois, futurologia – é uma possibilidade que está ao virar da esquina. Dentro ou fora do euro, se Portugal falhar no reequilíbrio das suas contas e voltar cruzar-se pela quarta vez em democracia com a bancarrota, não vai haver mundo que nos socorra: vamos ter de nos socorrer muito mais a nós mesmos.


IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
20/02/14


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