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Quem é o campeão?
IN "A BOLA"
25/02/19
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Quem é o campeão?
Por
muita gente que se rebelava, a cada instante, pelas misérias,
designadamente políticas, do efémero quotidiano, os séculos XIX e XX
projetam-se-nos em vivíssimos quadros de uma luta contra a religião –
uma luta ferozmente anticlerical. Recordo os “mestres da suspeita”, no
século XIX (e até o nosso Guerra Junqueiro) e, no século XX, estudam-na,
como se estudam os quadros de pintores célebres, no sossego de um
museu. Porém, este adormecimento da História movimenta-se e anima-se, de
súbito, quando passou a ser “proibido proibir”, quando qualquer assomo
de normatividade passou a entender-se como sinónimo de séria repressão.
Enfim, o indivíduo vê-se coagido a transformar-se na sua própria norma.
E, com algumas horas de jogging e uma “futebolada”
semanal, o indivíduo “fica com uma saúde de ferro”, assim o garantem a
rádio, a televisão, os jornais e até um ou outro entendido que sabe de
tudo, menos de si mesmo. E, com uma incontestável pujança, dado que a
lei suprema que nos governa é a mudança, a secularização apoderou-se da
nossa vida pessoal, social e política. A secularização, quero eu dizer: a
imanência sem transcendência, a razão sem a fé, o homem sem Deus. E,
sem transcendência, sem fé, sem Deus, a “Náusea” de Sartre é o sentido
de uma vida sem sentido. Alfredo Teixeira, professor da Faculdade de
Teologia da Universidade Católica Portuguesa e um ensaísta de originais e
eruditos trabalhos de investigação, no âmbito da teologia (e também um
temperamento artístico de inconfundíveis feições) escreve, no seu livro Não sabemos já donde a luz mana
(Edições Paulinas, 2004): “A religião na Europa moderna tem sido vista
sob o signo da secularização, o que, como é sabido, se traduziu, com
matizes regionais diversificados, numa diminuição da capacidade dessas
igrejas influenciarem a sociedade e num aprofundamento da separação
entre Igrejas e Estado (laicidade). O fenómeno tornou-se tão vasto, que
afetou a própria fisionomia das igrejas; mais, elas próprias descobriram
que o cristianismo trazia em si a semente dessa secularização” (p. 17).
Não sei se Heidegger, com o seu Sein und Zeit
(traduzindo: Ser e Tempo) não quis também dizer que a noção de Ser
mudava, de acordo com o tempo, com as idades. E assim a
religião-superstrutura ser “capaz de sobreviver ao ocaso da religião
infra-estrutura. A idade da religião como estrutura encontrou o seu
termo, mas seria ingénuo pensar que o mesmo se poderia afirmar da
religião como cultura” (Alfredo Teixeira, op. cit., p. 157). De facto, a
religião como cultura é uma forma de consciência social, que se afirma
sobre uma determinada base sócio-económica (este é um ponto nodal do
legado de Marx). Neste momento, ocorre-me a frase de Gianni Vattimo, em
tradução castelhana (Ediciones Península, Barcelona, 2002), do seu livro
Le aventure della differenza: “La metafísica es
historia de la diferencia, tanto porque es regida y hecha posible por la
diferencia, como porque sólo en el horizonte de la metafísica de la
diferencia permanece vigente y se da. Desde este punto de vista, olvido
de la diferencia no es tanto perder de vista el hecho de la diferencia,
sino olvidar la diferencia como hecho” (p. 120). Em Marx, tudo tem o seu
radical fundante na economia e reside na economia a garantia da
continuidade de tudo o que é humano. Enfim, porque o processo histórico é
infinita e contínua diferença, o facto de a religião ser mais cultura
do que estrutura e a própria virtude ser mais razão do que fé. E, assim,
a religião não morre, mas deixa de ter suporte divino: já foi o
proletariado; hoje, em época profundamente individualista, o culto
hiperbólico do espetáculo desportivo, expresso pelos grandes fazedores
de golos da atualidade, os Messis e os Ronaldos. Walter Hugo Mãe, nas
“Correntes d’Escritas” do ano em curso, emocionou-se ao afirmar: “A
alegria de ouvir as grandes vozes é privilégio que nos moverá sempre”. O
adepto do futebol não sabe quem é o Luandino Vieira, o Pepetela, o
Rubem Fonseca, a Lídia Jorge, o Miguel Real, o José Eduardo Franco e
outros escritores de igual qualidade, mas sabe quem é o Bruno Fernandes,
o João Félix, o Rui Patrício, o PIzzi, o Rafa e outros futebolistas que
fazem obras-primas com uma bola de futebol. E que no tempo do
“crepúsculo do dever” (Gilles LIpovetsky) são célebres pelas suas
“performances” predominantemente físicas e, pelas quais, ninguém lhes
recusa legítimo aplauso e gratidão. No entanto, o ser humano não é o
“homem-máquina”…
A propósito
do Bruno Fernandes, do João Félix, do Rui Patrício, do Pizzi, do Raffa
(que acima citei e outros nomes poderia lembrar), todos eles são a
“prova provada” de que o essencial, numa equipa de futebol, não é a
tática, mas o homem-jogador: é o seu talento, ou o seu génio (e não
tanto a tática) que resolvem os jogos de futebol. Há meia-dúzia de dias,
recebi, em minha casa, um telefonema do António Simões, que eu sempre
apreciei, como exímio jogador de futebol (ombreando, em habilidade, em
arte, com o Albano e o Vasques dos “cinco violinos”, o João Alves e o
Chalana do Benfica, o António Oliveira do F.C.Porto e do Sporting e o
José Maria Pedroto do F.C.Porto) – que eu sempre apreciei como
extraordinário jogador de futebol e que hoje aprecio também, pela
coragem, pela dignidade, pela lucidez, como encara a vida e portanto o
próprio desporto. Disse-me ele, procurando ser imparcial e sereno:
“Quero imitar uma pessoa que não esqueço, porque muito admiro, o Sr.
José Maria Pedroto, quando ele, pelo telefone lhe disse, segundo penso,
há mais de 40 anos: Professor, preciso de falar consigo”. E acentuou:
“Também eu preciso de falar consigo. Acabei de ler três livros da sua
autoria e tenho perguntas a fazer-lhe. Há uma que já não faço, é que
passei a entender agora porque afirma, há tantos anos, que o paradigma
que fundamenta a prática desportiva é uma ciência humana”. E continuou,
com a sua habitual visão harmoniosa e cimeira: “Só quem nunca jogou
futebol pode discordar da sua tese”. Neste passo, atalhei: “Mas eu
também nunca joguei futebol”. E ele: “Eu sei. Mas também é verdade que
procurou aprender com treinadores que foram jogadores de excelente
nível, a começar no Pedroto, no Fernando Vaz e no Artur Jorge”. O
António Simões, o “irmão branco” do Eusébio, sempre subtil e profundo,
no exame e observação do mundo, um homem a quem a mesquinhez de espírito
indigna e sufoca…
Quem é um campeão?... Um sobredotado e um
supertreinado, com a força emocional e a psicológica suficientes às
altas performances e à dramatização do espetáculo e ao, como diriam os
franceses, “dépassement de soi”, ou a transcendência, como poderia
dizer-se em português. O campeão, que atinge e conquista o esplendor
supremo do espetáculo desportivo, é ainda um homem preparado para
obedecer e sofrer. Isabelle Queval adianta, no seu livro S’accomplir ou se dépasser – essai sur le sport contemporain (Gallimard,
Paris, 2004) que “o desporto de alto nível é um laboratório de
melhoramento do humano, o espetáculo permanente dum evolucionismo
simplificado, em que as “performances” não existem senão para ser
ultrapassadas, em que as curvas estatísticas sobem sem descanso, em que a
proeza de hoje supõe a proeza do dia seguinte – sempre em movimento,
sempre em busca de novos recordes. A fascinação pelo progresso
incessante anima o desporto de alto nível” (p. 205). Nietzsche sublinha
que o corpo, o grande esquecido da filosofia e da cultura ocidentais,
tem agora lugar de destaque, na vida de todos os dias dos europeus. Mas
um corpo que, na expressão inesquecível de Teilhard de Chardin, “destila
espírito”. O ADN já não pode considerar-se produto do acaso, pois que,
nele, há a informação suficiente, que permite a ulterior evolução. E, se
o corpo “destila espírito”, como diria depois M. Merleau-Ponty, “eu sou
meu corpo”. E nem sempre o treino desportivo respeita o corpo que eu
sou! Aliás, o desporto hodierno, já o digo há muitos anos, “reproduz e
multiplica as taras da sociedade capitalista”. O “citius, altius,
fortius” do olimpismo supõe, atualmente, tecnociência e tecnologia e
medicina e cirurgia e apurada dietética e uma disciplina férrea e… a
redução do ser a mercadoria! Nunca o efémero foi tão valorizado, como
hoje. E é o efémero que demasiadas vezes se realça na vida de um
campeão. Quem o vê, no quadro de um projeto humanista renovado? Quem é o
campeão?
Quem é o campeão? Vejamos o mundo donde ele nasce:
um mundo de verdades e meias-verdades, de adoração a Deus e da “morte de
Deus”, do mais adiantado tecnocientismo e do mais bárbaro arcaísmo, em
que os valores económicos não são da mesma ordem dos estéticos, éticos,
ou espirituais, mas são eles os que parecem satisfazer plenamente o
mercado e a concorrência. E, porque a sociedade é um grande mercado
onde tudo flutua de acordo com os princípios da Bolsa, ele é a figura
primeira da civilização do deus-lucro. A grande batalha, a grande guerra
do século XXI será a batalha, a guerra entre o comércio, de um lado, e a
cultura e o desporto, do outro. E uma questão se levanta, cortante:
qual o futuro da cultura e do desporto, se for o comércio a defini-los e
a guiá-los? Demais, ao contrário do que Marx pensava, nem sempre a
economia é a infraestrutura. A Europa do carvão e do aço não foi
suficiente para construir a Europa. Sou em crer que, desde a Idade
Média, há uma cultura europeia, que se fundamenta na filosofia grega, no
direito romano, na mensagem judaico-cristã e no espírito crítico do
iluminismo. A encíclica “Rerum Novarum” de Leão XIII e a “Quadragesimo
Anno” de Pio XI (que chegou a convidar um sociólogo jesuíta
norte-americano a preparar-lhe uma encíclica de condenação aberta das
ditaduras nazi e comunista); e as “Mater et Magistra” e “Pacem in
Terris”, de João XXIII, o Papa do “Aggiornamento della Chiesa”; e todo o
pontificado do Papa Francisco, que é cristão, nas palavras e nas obras –
assim o registam e o comprovam. Por isso, o campeão desportivo não deve
entender e viver a transcendência como uma prática, sem reporte a uma
filosofia, a uma política, a uma religião. O campeão, habituado a
transcender os outros, deve fazer da transcendência um “modo de vida”,
que não seja tão-só um desenvolvimento quantitativo de marcas e
recordes mas, sobre o mais, um desenvolvimento qualitativo, visando um humanismo integral…
dos outros e de si mesmo! A mundialização do desporto não pode
realizar-se apenas nos estádios e nos ginásios e nos pavilhões
gimnodesportivos. O desportista, mormente o campeão do desporto, tem de
concorrer ao nascimento de uma nova humanidade. Relembro a conhecida
frase do pintor Klee: “a arte não reproduz o visível, torna visível”.
Parafraseando: o desporto não reproduz o visível, tem de tornar visível
um homem novo!
* Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto
IN "A BOLA"
25/02/19
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