Um ano com Trump
Transformações desta natureza, que radicam na forma como o
Presidente Trump lê o mundo e as novas regras que usa para interagir com
os estados tendem a ter um impacto mais profundo e duradouro.
Dois dias antes de partir para o seu périplo asiático, Donald
Trump fez uma visita a Pearl Harbor, a ilha no Havai que foi alvo de um
ataque surpresa da esquadra de aviação japonesa em dezembro 1941. O
presidente e a primeira dama foram prestar homenagem aos soldados mortos
pelas bombas lançadas sobre alvos indiscriminados. Trata-se de uma
declaração simbólica: por um lado, apesar do tempo e de saradas as
feridas, os americanos não esquecem aquilo que consideram um ataque fora
dos códigos de honra e da guerra justa; sabem que não podem contar com
nenhum estado para além de si próprios para garantir a sua segurança.
Por outro, dê por onde der e por mais que as circunstâncias mudem, a
América está primeiro.
Esta ideia de que a América está primeiro é o slogan que sintetiza o
que se tem vindo a passar no último ano, com a eleição de Donald Trump.
Passadas as indignações de variados sectores político-sociais nos
Estados Unidos e um pouco por todo o mundo, agora já vamos percebendo
com maior precisão o que isto quer dizer. Há três pontos fundamentais
que, tomados no seu conjunto, explicam o gesto de Pearl Harbor e as
linhas centrais da política internacional com as quais passámos a
conviver.
O primeiro, enunciado pelo presidente no discurso da Assembleia Geral
das Nações Unidas, é que a soberania – e o correspondente
reconhecimento, pelo menos até certo ponto, das esferas de influência
dos estados mais poderosos – passou a ser o valor central da política
externa norte-americana. O nacionalismo interno tem o seu equivalente
externo. Trump espera que cada estado tome conta de si próprio e que não
dependa de terceiros (leia-se a América) para garantir a sua segurança.
Assim, o multilateralismo e as instituições internacionais sofrem um
duro golpe. Se restassem dúvidas, veja-se a viagem à Europa onde o
presidente parou na Polónia para um discurso laudatório a estado também
cada vez mais nacionalista e mais cético de eficácia das organizações
internacionais – e apontado como um exemplo de parceiro preferencial dos
EUA –, em contraste com as duras declarações na cimeira da NATO e o
afastamento cada vez mais notório dos aliados tradicionais na Europa.
O que nos leva ao segundo ponto: o que suportava estas relações
americanas com o velho continente e com outras democracias espalhadas
pelo planeta era uma certa crença comum no excecionalismo liberal
americano. Acreditavam, os EUA e os seus aliados, que a intervenção da
América no mundo – e a distribuição de bens comuns como a liderança, a
segurança e um sistema de mercado estável – trazia efeitos benéficos
para todos, mesmo estados terceiros que não estivessem de acordo com os
mesmos princípios. Trump rompeu com essa tradição. No seu pensamento a
América não tem obrigações ordenadoras nenhumas. É, nesse aspeto, um
estado igual a todos os outros. Assim, a política externa deve servir
para defender os Estados Unidos de um mundo que lhe tem sido hostil e
para fortalecer as suas estruturas internas.
E é isto que permite uma mudança na geometria de alianças (ou a sua
destruição, porque agora já não há alianças, há parcerias). Como estado
mais poderoso do mundo, Washington deve agora relacionar-se
preferencialmente com outras potências, independentemente do seu
comportamento com terceiros (estados) ou tipo de regime. O que importa é
definir os termos das relações com estados como a China, a Índia ou a
Rússia, no sentido do isolamento de Pequim, sem hostilização aberta. Mas
deixando claro que a linha vermelha é a defesa intransigente dos
interesses norte americanos. Para Trump, o mundo é um lugar perigoso. E
os outros estados têm de cooperar os Estados Unidos para resolver
questões segmentárias onde há interesses comuns (como a proliferação
nuclear da Coreia do Norte ou o terrorismo) ou então cada um segue o seu
caminho, em competição.
Aqui, entra o terceiro ponto – o protecionismo económico. Donald
Trump parece conviver melhor do que qualquer outro presidente americano
desde os anos 1990 com a ideia de competição entre os estados. E separa
cuidadosamente as esferas de segurança e da economia. O que incomoda
verdadeiramente o presidente, é que estados como a China façam “batota”
no que respeita à economia internacional. Na visão de Trump, as regras
do comércio livre prejudicam gravemente os EUA. Sendo uma das maiores
obrigações de um presidente provir o bem-estar da classe média e a
mobilidade social dos mais pobres, essas mesmas regras internacionais
têm de ser mudadas. Trump retirou-se to Tratado Transpacífico de
Comércio Livre (TTP) – que ironicamente excluía a China e trazia
benefícios para os rivais de Pequim, o que fazia do tratado uma
importante ferramenta para equilibrar do poder chinês – e do regime de
alterações climáticas de Paris que, segundo Trump, também teria um
impacto negativo na criação e manutenção de empregos nos Estados Unidos.
Com a retirada do excecionalismo da hierarquia das ideias
norte-americanas, as relações internacionais entram num período de
normalidade anárquica (i.e. sem liderança internacional formal), como
não se via desde antes da II Guerra Mundial. Os Estados Unidos são ainda
a maior potência internacional, mas posicionam-se no mundo de forma
diferente – dedicada quase inteiramente ao seu interesse nacional – onde
não há muito espaço para cooperação pré-programada (é natural que as
organizações internacionais não desapareçam, mas que se vão esvaziando
pouco a pouco), paulatinamente substituídas por relações bilaterais com
base em capacidades, posição geográfica e interesses. Os Estados Unidos
(de Trump) aprenderam em Pearl Harbor que não podem contar com estado
nenhum de forma permanente, e se não querem que um episódio semelhante
se volte a repetir têm que se defender com unhas e dentes. A América
primeiro, disse o presidente no simbolismo da visita ao Havai. E foi
nesta disposição que partiu para a Ásia onde agora, devido a mudanças
sistémicas, se joga muito dos destinos do mundo.
Tudo isto pode parecer pouco. Afinal se olharmos para o mundo, este
parece não ter mudado assim tanto de há um ano para cá. Mas é importante
que não haja ilusões. Transformações desta natureza, que radicam na
forma como a presidência lê as relações internacionais e as novas (ou
muito velhas e recuperadas) regras que usa para interagir com os estados
levam tempo a gerar mudanças práticas. Mas uma vez implementadas tendem
a ter um impacto muito mais profundo e duradouro que outras mais
conjunturais. Donald Trump foi eleito há um ano por uma parte da
população que se sentia esquecida pelas elites, com o mandato claro para
virar as suas atenções para dentro e usar a política externa para lhes
devolver a prosperidade perdida. Até agora tem seguido o plano à risca.
Aparentemente sem se preocupar com o impacto a longo prazo que estas
transformações terão para o mundo e para os Estados Unidos da América.
Como dizia Robert Art, o mundo abomina vazios de poder. Mas é nesta
direção que agora se caminha.
* Doutoranda no Departamento de Estudos Internacionais da Universidade
de Miami-EUA, actualmente na fase final da redação da tese "The
Democratic West and the Democratic Rest: Searching for the Direction of
the New Liberal Internacional Order”, como Fulbright Scholar.
IN "OBSERVADOR"
08/11/17
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