Creio que muitos de nós ainda não se deram conta do que significaram os anos da troika.
Manhã de quinta-feira. Na Antena 1, sucedem-se as vozes comentando o
veto presidencial ao decreto do Governo que pretende impor às/aos
educadoras/es e professoras/es dos ensinos básico e secundário que
esqueçam sete anos das suas vidas profissionais para efeitos de
progressão na carreira e com as óbvias consequências na sua reforma. Um
antigo operário têxtil da Beira Interior emociona-se ao falar dos seus
muitos anos de desemprego, de “quanto sofremos” nos anos da troika
“para lutarmos por este país, de quanto nos sacrificámos, nós e os
nossos filhos, para levarmos este país para diante”, indignado com os
“privilégios” que, em sua opinião, os professores querem obter: “E a
nós, que nunca fizemos uma greve, que trabalhámos até deixarmos de
poder, quem nos devolve o emprego que perdemos, os salários que nos
cortaram?” Ninguém. Nem a ele, nem às centenas de milhares que nos anos
da devastação social foram despojados de emprego, salários e, em grande
medida, dignidade. Nem aos professores, nem ao conjunto dos funcionários
públicos, já agora: em 2014, tinham perdido 24% do poder de compra que
tinham em 2010; e nenhum governo dos que temos tido lhes vai devolver os
milhares de milhões de euros que, sob a forma de salários, lhes foram
retirados. Só nos quatro anos de Governo Passos a redução do número de
funcionários públicos (todo o tipo de contratos, incluindo os precários)
foi de quase 80 mil, 11% do total. Entre eles, 29 mil professores
(17,4% do total). É totalmente excecional que, na história
contemporânea, em período tão curto de tempo, reduções nos efetivos do
Estado se façam a este ritmo.
Creio que muitos de nós ainda não se deram conta do que significaram os anos da troika. Habituados a ouvir falar de economia através de uma desfocada lente macro, traduzimos o discurso da recuperação económica
numa genérica sensação de alívio, como se pudéssemos, por fim, retomar
uma vida, já de si precária, subitamente interrompida há dez anos, como
se tivéssemos passado por uma guerra e agora nos devêssemos concentrar
na reconstrução. Essa, aliás, foi uma das imagens que Passos Coelho
escolheu, no Natal de 2014, para descrever o que então vivíamos,
convidando-nos a aprender com o exemplo dos combatentes da Guerra
Colonial, “servindo a pátria de forma absoluta”! É de uma moral assim
que surgem estes discursos contra os direitos dos professores, uma moral
de pós-guerra: todos perdemos, ninguém pode recuperar o que perdeu; se o
fizesse, trairia a comunidade dos magoados, como se esta se tivesse
constituído em torno de um pacto de sacrifício que todos assumimos! Ora,
nem é verdade que todos tenham perdido (a concentração de rendimentos
nos mais ricos aí está para o comprovar), muito menos que todos tenhamos
assinado um pacto de sacrifício económico e social que nenhum governo,
nenhuma troika, nenhum patrão negociou connosco, estabelecendo
responsabilidades, fixando partilha de sacrifícios, preservando os que,
de tanto se terem sacrificado antes, não deveriam contribuir para este
novo esforço.
Não me surpreende ver esta moral reproduzida por quem incorporou
hierarquias sociais e naturalizou desigualdades (“o mundo é assim, não
vai mudar”) e, por isso, desconfia sempre de quem se organiza para as
denunciar. Nesta moral, é quem não faz greve e aceita sacrifícios que
deve ser premiado e não “os criminosos” que as fazem, como lhe saiu à
ministra da Saúde. O que me indigna é que também neste Governo haja quem
“criminalize” a essência da democracia que é o direito a resistir à
injustiça e a reivindicar os seus direitos, quem desvirtue completamente
o exercício do direito à greve e sacuda para cima do grevista
responsabilidades que são suas enquanto poder que não negoceia,
recuperando assim o pior de 200 anos de intimidação do trabalhador que
não se cala perante a injustiça. “O sistema económico atual” — o velho
capitalismo tomado pela “meritocracia neoliberal” — “está a trazer à
tona o pior de nós”, escreveu há anos o psicólogo social Paul Verhaeghe,
autor de What About Me?The Struggle for Identity in A Market-Based Society
(2014). Num mundo em que os trabalhadores são “infantilizados”
(perdendo autonomia, responsabilizados pelos fracassos), “a
solidariedade torna-se um luxo demasiado caro”. “Para os que acreditam
na fábula de que dispomos de uma irrestrita possibilidade de escolha”
neste padrão de relações sociais, “a liberdade que julgamos existir no
Ocidente é a maior inverdade dos nossos dias e da nossa era”.
IN "PÚBLICO"
29/12/18
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