Afirmar o Jornalismo (científico)
“Afirmar
o jornalismo” é o mote do 4º Congresso dos Jornalistas que está a
decorrer depois de um hiato de quase vinte anos. Afirmar o jornalismo
não é tarefa fácil, sobretudo quando isso implica separar o jornalismo
do entretenimento, a informação do espetáculo, a seriedade do
sensacionalismo.
É certo que ser jornalista hoje é diferente do
que era há vinte anos. A Internet, as redes socias e os dispositivos
móveis são novas plataformas que permitem a produção e disseminação de
conteúdos de uma forma mais instantânea mas também mais efémera. A
informação circula a grande velocidade, é atualizada constantemente e é
partilhada e transformada pelo público através dos seus comentários e
opiniões. O jornalismo é hoje mais participativo. Não basta ter
leitores, ouvintes, audiência. Há que fazer com que estes partilhem o
que leem, o que ouvem, o que vêm. Os contratos publicitários, tão
importantes para a sobrevivência dos meios de comunicação social, e dos
jornais em particular, regem-se hoje também por estes novos parâmetros.
Desta
forma, o jornalismo confronta-se com duas premissas muitas vezes
opostas. Por um lado, a de afirmar a sua missão de sempre, a de
interpretar, de informar e servir a sociedade, os leitores, os ouvintes,
os telespetadores e os anunciantes. Por outro lado, a de influenciar a
opinião pública, atrair mais “clientes” e contratos publicitários.
Assim, tenta-se cada vez mais agradar o público, entretendo-o, dando-lhe
matérias que lhe agradem e apresentando a informação de forma o mais
apelativa possível. E quando a competição é grande, seja entre empresas
de comunicação social, que pretendem manter-se de forma economicamente
viável no mercado, ou entre jornalistas que visam defender os seus
postos de trabalho, a tentação de usar ferramentas que delapidam a
seriedade e a principal missão do jornalismo, é grande. Divulgam-se as
notícias com meias verdades, com algumas mentiras, deturpam-se as
estatísticas, selecionam-se a dedo as imagens, os sorrisos e os choros.
Os
“marketers” há muito que reconhecem que as emoções vendem e que os
media para sobreviverem têm que jogar este jogo, ou seja, driblar entre a
informação séria e credível e o espetáculo. Os jornalistas e repórteres
não apresentam somente factos irrefutáveis sobre o mundo que nos rodeia
mas antes proporcionam-nos uma representação do que desejam que o
público apreenda. O jornalismo consegue assim servir múltiplos
propósitos, desde informar, entreter, fomentar debates e gerar uma certa
opinião pública. Mais do que meramente comunicar a realidade, os
jornalistas e repórteres conseguem criar outras realidades. Cada vez
mais, esperamos de um jornalista a habilidade de um “showman” que
consegue influenciar a sociedade mais pela emoção do que pela razão.
Ao
mesmo tempo que observamos uma crescente espetacularização do
jornalismo, observamos também um crescente interesse em publicar e
divulgar informação científica nos media, o que por si só é bastante
positivo. Contudo, estes dois fenómenos em conjunto criam problemas e
desafios.
A verdade científica é diferente da verdade dos media
A
verdade científica é relativa, está dependente de descobertas que são
alvo de constante revisão e refutação. Muitas das novas teorias e
descobertas conseguem ser validadas por dados e aplicações práticas, mas
outras apenas abrem caminho para nova investigação. Existe um grande
grau de incerteza, ou, por outras palavras, verdades que são
probabilísticas. Mas como incertezas não dão grandes títulos os
jornalistas tendem a transformar a verdade científica numa verdade
absoluta. Deste modo, em vez de ajudar o público em geral a compreender
os resultados científicos, cria-se uma nova realidade. Mais, a
investigação científica que se sucede a uma dada descoberta, onde se
retificam resultados e se refutam outros, raramente recebe a atenção dos
media. Assim sendo, a informação errada que o público eventualmente
recebe é raramente corrigida.
A crescente cobertura pelos media
de descobertas científicas, médicas, tecnológicas aconteceu em paralelo
com o crescente interesse do público por estes assuntos, sobretudo
relacionados com a saúde. A constante divulgação de notícias com
determinadas descobertas, por exemplo genéticas – “foi descoberto o gene
do alcoolismo” ou “já se conhece o gene do autismo” –, cria no público
falsas expectativas sobre a existência de cura para determinadas
doenças, assim como pode influenciar a produção de conhecimento
científico, nomeadamente a atribuição de mais fundos públicos para a
investigação que tenha maior popularidade.
A competição por espaço e tempo nos media
O jornalismo científico compete por espaço e tempo com outras notícias.
Para ganhar esta competição, é tentador ceder ao sensacionalismo,
escolhendo divulgar determinados artigo científicos e apresentando dados
e descobertas por forma a gerar no público semelhantes emoções quanto
as causadas por notícias sobre catástrofes naturais, dramas familiares,
ou crimes.
Por razões de sobrevivência, os meios de comunicação
social têm poucos incentivos para alterar a forma como a informação é
transmitida, nomeadamente a informação científica. E a verdade seja
dita, muitos cientistas preferem que os seus estudos tenham alguma
divulgação mediática, mesmo que sensacionalista. Mas, apesar de difícil,
não é impossível estabelecer parâmetros de maior veracidade e qualidade
no jornalismo científico, por exemplo através de comités científicos
nos meios de comunicação social onde seja possível estabelecer relações
de maior proximidade entre jornalistas e cientistas. No entanto,
enquanto leitor, controle as emoções quando ler, por exemplo, que o
chocolate cura o cancro ou que existe uma nova bactéria que pode matar
em poucos dias.
* A AUTORA
Sou economista mas raramente escrevo sobre a dívida e o défice, conduzo antes experiências para analisar o comportamento dos agentes económicos. Tenho raízes no ISEG, onde me licenciei em Economia e fiz um mestrado. Fui Assistente na Universidade Católica de Lisboa. Tirei o doutoramento em Economia na Universidade de Amesterdão e, em 2007 rumo à Universidade de Chicago para um pós-doutoramento. Desde 2009, sou professora Assistente na Universidade de Purdue. Escrevi para o Diário de Notícias entre 2006-2007, saltei depois para a opinião do Negócios e desde 2015 que assino &conomia à Sexta, no Expresso. Escrever opinião é um modo de analisar de fora o que se passa cá dentro.
IN "EXPRESSO"
13/01/17
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