21/05/2024

MARCO MARQUES

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Face ao abismo,

o Algarve deu

um passo em frente


Sob as alterações climáticas, prevê-se mais calor e menos chuva na região, entre 9% e 23%. Os impactos já estão à vista, mas a estratégia de mitigação dos efeitos não segue as recomendações científicas. O futuro da região depende da mobilização da comunidade por uma alternativa sustentável.

No anterior artigo de opinião, abordei a região do Algarve como um oásis artificial mantido no meio de uma região propensa à desertificação. Tentarei agora detalhar como essa disposição está confirmada, quais os efeitos mais nefastos que podem vir a ocorrer e o que a comunidade científica, em diálogo com a comunidade local, propõe para minimizar esses efeitos.

A Península Ibérica como hotspot de alterações climáticas

A região mediterrânica (que inclui todos os países que circundam o Mar Mediterrâneo, incluindo Portugal) é considerada, de forma praticamente unânime pela comunidade científica, um hotspot para as alterações climáticas. Isto quer dizer que, considerando os impactos globais das alterações climáticas (aumento de temperatura, diminuição da precipitação), a região mediterrânica é uma das regiões onde esses impactos se farão sentir de forma mais acentuada.

São diversos os estudos que têm analisado os cenários futuros para esta região. Em 2017, uma equipa de cientistas de uma universidade italiana, simulou cenários nesta região até ao ano de 2100

De acordo com os resultados, a região mediterrânica poderá aquecer a uma velocidade 20% superior à média global. Estes efeitos serão mais sentidos no Verão e na zona norte da região, onde se encontra Portugal. O mesmo estudo alerta para que este aquecimento, em algumas áreas dentro desta região possa ser 50% superior à média global.

Outro aspeto abordado no mesmo estudo é a diminuição de precipitação. As previsões apontam para uma diminuição generalizada em toda a região. Em áreas como a Península Ibérica, esta diminuição será sentida em todas as estações do ano e será superior a 50 mm por cada grau de aumento de temperatura. Isto levará a uma diminuição ainda maior da quantidade de água disponível nesta região, que inclui o Algarve. A figura seguinte mostra as alterações na precipitação ao longo das estações do ano (vermelho mais carregado indica maior perda).

Figura 1 - Taxa de variação da precipitação total considerando a variação da temperatura média global (mm/K): a (inverno), b (primavera), c (verão), d (outono). As variações não são significativas nas áreas brancas. Fonte: (Lionello e Scarascia, 2018).

Impactos no Algarve e medidas de mitigação

Num estudo recente,
uma equipa da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa dedicou-se a simular, em vários cenários de alterações climáticas, a evolução da disponibilidade de água e as necessidades de irrigação no Algarve até 2100. Os resultados confirmam as previsões do estudo anterior e apontam para uma diminuição da precipitação entre -9% e -23% no final do século XXI. A temperatura também deverá aumentar entre +1.6 ⁰C, ou +3.2 ⁰C.

O artigo vai mais longe e discute medidas de mitigação com um conjunto diversificado de atores locais (municípios, associações de agricultores e regantes, centros de investigação, ONG, entidades do setor do turismo, etc…). As medidas foram divididas em 6 grupos: i) construir uma dessalinizadora; ii) melhorar a eficiência de utilização da água; iii) construir um novo reservatório; iv) criar de paisagens de retenção de água; v) melhorar a reciclagem de águas residuais; vi) reduzir a água utilizada pela agricultura.

Figura 2 – Caminhos de adaptação escolhidos pelos atores locais, nos dois cenários diferentes. Fonte: (Dias et al. 2020).

As medidas escolhidas pelos atores locais são muito interessantes e estão resumidas na figura anterior (Fig. 2). Como medidas para lidar com a falta de água, a opção prioritária é a melhoria da eficiência da utilização da água, enquanto se criam paisagens com capacidade de retenção de água. Ao mesmo tempo, o tratamento de águas residuais deve avançar nas instalações que já permitem esta tecnologia. Estas medidas devem ser tomadas ao mesmo tempo que se preparam todas as instalações para uma implementação total até 2035. Segundo os autores, só com estas medidas se poderá atingir o objetivo de adaptação no melhor cenário. No caso de um cenário mais intenso, seria necessário construir um outro reservatório em 2060. Esta medida poderia ser complementada, mais tarde (e sem consenso entre os vários atores locais), pela construção de uma dessalinizadora, como medida de último recurso.

A esperança nas mãos da mobilização popular

Tendo em conta estes cenários e as soluções apresentadas (discutidas no artigo anterior), é possível concluir que o caminho de adaptação do Algarve às alterações climáticas poderá estar a dirigir a região para um abismo. Ao contrário das recomendações discutidas com a comunidade local, a dessalinizadora poderá mesmo avançar até 2026, tendo já recebido “luz verde” por parte da Agência Portuguesa do Ambiente

A esperança num outro caminho só reside, de facto, na possibilidade de a comunidade local questionar o atual modelo de desenvolvimento desta região, propor alternativas sustentáveis e mobilizar-se por elas. O Algarve não é um caso isolado e sofre dos mesmos impactos que outras regiões estão a viver neste momento na região mediterrânica. Veja-se o caso das Canárias, onde as mobilizações contra o modelo de turismo de massas, um modelo de destruição ambiental, pobreza e precariedade, se têm intensificado. Algo que também acontece em Itália, na Grécia, Croácia. Só espero que, no futuro, quando olharmos para trás, não digamos sobre as opções tomadas a frase que é o título do álbum do Pedro Mafama: “Estava no abismo, mas dei um passo em frente”. 

*Engenheiro florestal.Estudante de doutoramento no Centro de Ecologia Aplicada "Prof. Baeta Neves" (ISA-UL).


IN "ESQUERDA-14/05/24 .

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