07/02/2022

FERNANDO SOBRAL

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 O discurso dos Minions

Conhecendo o passado e o presente, os portugueses desconfiam do futuro. Por isso uma maioria acotovelou-se debaixo do guarda-chuva de alguém que prometia segurança e uma minoria ruidosa votou em partidos mais extremistas para gritar a sua revolta. Mas o impasse não desapareceu.


O Governo que sai destas eleições é o  “Governo de acalmação” possível, porque os ânimos estão demasiado exaltados para se olhar serenamente para o futuro do país.
 
Este é o país onde há “uma pipa de massa” para distribuir, mas ela está escondida dos olhos dos comuns mortais. Nem pedindo ajuda a Columbo ou ao dinâmico inspector Clouseau poderemos descobrir onde irá parar esse dinheirito que a senhora Europa nos envia com pudor, como se fosse a Pantera Cor de Rosa. Conhecendo o passado e o presente, os portugueses desconfiam do futuro. Por isso uma maioria acotovelou-se debaixo do guarda-chuva de alguém que prometia segurança e uma minoria ruidosa votou em partidos mais extremistas para gritar a sua revolta. Esta é a paz anunciada para os próximos quatro anos. Mas o impasse não desapareceu.

Ao contrário do que disse um farol ideológico do actual PSD, quem falhou não foi o povo português. Foram os pretensos líderes de uma opaca elite que só quer continuar a ter direito à maior parte do pudim, seja como dádiva ou monopólio. À esquerda e à direita continua a acreditar-se, como num conto de fadas, que a realidade se adapta as suas pindéricas ficções nascidas durante um chá das cinco qualquer. Não têm ideias e talvez por isso elas não possam ser traduzidas, nem mesmo do popular alemão.

Estas eleições não foram, claro, uma versão bairrista do filme “Lost in Translation” de Sofia Coppola. Este falava-nos da dificuldade dos protagonistas serem compreendidos em Tóquio, mesmo quando tinham a companhia de tradutores. Aqui, mesmo com tradutores, a linguagem política foi digna dos simpáticos Minions do filme “Gru, o maldisposto”. Ninguém percebe o que se diz. Por isso, à falta de tradução, restou a busca de alguma segurança ou a raiva. Cada um escolheu o seu lado da torrada.

Os chamados líderes discutiram amores e ódios, mas poucos disseram o país que queriam construir. Portugal, segundo parece, já não tenta ser a Irlanda com sol e agora deseja ardentemente ser uma Estónia com laranjas. No tempo de Eça éramos conhecidos na Europa por as ter. Talvez esse seja o nosso destino: em vez de um imenso bananal, sermos um suculento laranjal (se chover, é claro!). A insónia nacional poderia tentar resolver-se se existisse uma quimera. Não há. Se algum líder tentasse perseguir quimeras (a coisa mais fantástica parecida com isso foi um exemplar do OE 2022, essa obra-prima de realismo mágico sobre o sonho nacional), ainda se poderia fazer um pouco de ioga enquanto se esperava.

Alexandre, o Grande, sonhava chegar ao fim da terra. Era a sua quimera. Aqui, a quimera é a aprovação de um OE, com o qual uns estavam de acordo e outros estavam contra. Triste e pobre sonho nacional. Ninguém sonha com um país novo (mesmo que o digam), uma vacina utópica, uma ilha de sol no meio da neve. O doutor António Costa sossega, sobretudo quando diz que maioria absoluta não quer dizer poder absoluto. Não haverá um Rei Sol por aqui. Talvez porque a iluminação está dependente do preço da electricidade.

Portugal é o país onde tudo se move mais lentamente do que uma tartaruga. Em 1908, Ferreira do Amaral dirigiu um executivo chamado o “governo da acalmação”. Não durou muito. Portugal vivia dias tempestuosos e a Monarquia ia-se dissolvendo. Dois anos depois Fernando Pessoa não tinha muitas dúvidas: “Metade do país é monárquico; metade do país é republicano…Por qualquer razão, que não nos compete investigar, os republicanos estão mais organizados do que os monárquicos; noutras palavras, a maioria republicana activa é mais activa que a maioria monárquica activa”.

Mais de um século depois, Portugal parece novamente dividido ao meio, com a minoria à direita do centro mais exaltada. Por isso o Governo do PS que sai destas eleições é o “Governo de acalmação” possível, porque os ânimos estão demasiado exaltados para se olhar serenamente para o futuro do país.

Ninguém tem o dom de o prever. Só se pode pedir uma coisa: bom senso. Há algum tempo o sociólogo alemão Ulrich Beck escrevia que “os cidadãos, as pessoas da rua, confrontam-se com situações que a maioria deles não entende. Não sabem o que se está a passar. Os especialistas não têm resposta, os políticos não têm resposta, e assim, as pessoas não têm resposta. Mas, por outro lado, a sociedade está a mover-se, pensando em todo o tipo de alternativas”. E está. A sociedade portuguesa, entre o desvario consumista de anos anteriores e a austeridade visível ou disfarçada destes últimos, aprendeu a sobreviver. Uns emigraram e os outros ficaram cá, emagrecendo e tentando descobrir uma nova economia, apesar de cercados por um fisco inclemente.

Vivemos tempos de perplexidade, em que o tecido económico se transformou: virámo-nos para a exportação e para o turismo, os portugueses são cada vez mais unidades de produção não enquadrados em empresas como antigamente. Mas, por outro lado, a competitividade continua a depender excessivamente da desvalorização do valor do trabalho. Uma sociedade moderna nunca poderá sustentar-se com salários de 700 euros que são pagos a uma parte substancial dos trabalhadores portugueses. E esse é um estrangulamento. A menos que o modelo seja fazer de Portugal uma Estónia orgulhosamente pelintra.

Em tempos de indiferença (daí o sucesso do discurso do “individualismo” e do “ódio” ao que é estranho), uma pequena história mostra a nova realidade. O fotógrafo francês René Robert, de 84 anos, saiu para passear no centro de Paris e caiu inanimado na rua. Ali ficou nove horas sem que ninguém mostrasse o mínimo interesse por ele. Morreu gelado e não por causa da ferida no corpo que sofreu ao cair. Por ele passaram centenas de pessoas que, como em Portugal, iam na maioria a olhar para o telemóvel, sem verem a realidade à sua volta.

2. A idade da lata

Chama-se “The Gilded Age” (HBO), mas poderia chamar-se “Downtown Abbey versão Z”. É pouco mais do que uma fotocópia sonolenta de tudo o que já se filmou sobre os “novos ricos” nova-iorquinos em finais do século XIX, com os bolsos cheios de dinheiro malcheiroso e que querem comprar um lugar ao sol na sociedade perante o indisfarçável desdenho das velhas famílias americanas. Fazem mansões enormes, cheias de objectos históricos cujo real valor cultural não conhecem, para serem invejados. Na série há uma jovem Marian Brook, cujo pai deixou sem um dólar, e que tem de se colocar nas mãos de duas tias das velhas famílias. Na penumbra estão os serviçais, com as suas pequenas intrigas. E há alguma dose de “politicamente correcto” para que as actuais almas americanas não fiquem chocadas. Claro que os os jovens irão ser os responsáveis, através da paixão, para a derrocada da velha fronteira entre o “velho dinheiro” e o “novo dinheiro”. Acredita a HBO que assim os subscritores do canal possam dormir felizes.


Não é um acaso. Há cada vez mais concorrência para se conseguir os favores de quem está disposto a pagar dezenas de euros por mês para ver todas as “novidades” que os canais de streaming nos “oferecem”. A Netflix é imbatível, por agora, com os seus 222 milhões de subscritores em todo o mundo. Mas o crescimento está a esbater-se. Há o perigo da fadiga do consumidor e, não por acaso, há cada vez mais pessoas a cancelarem as subscrições depois de verem o que querem mesmo ver.

Há quem diga que a “fadiga” não é ainda visível, mas o certo é que a oferta é tanta e tão variada que, numa sociedade como a nossa (a portuguesa), a elasticidade das bolsas pode ter um limite. E mesmo em países como os Estados Unidos ou o Reino Unido também o terá. Face a isso, os canais têm de produzir qualidade e também material distintivo. Para evitar o cansaço dos subscritores, as empresas têm de gastar constantemente em novas séries e filmes que os possam atrair. Não é um trabalho fácil, acredita-se.

Mas produtos como “The Gilded Age”, se confortam espectadores que só querem estar com os olhos entretidos durante algum tempo sem pensarem, mostram um cansaço criativo desesperante. E isso, no caso da HBO, começa também a ser notório. Especialmente na oferta que tem o seu serviço em Portugal.

O poeta da acção

Gabriele D’Annunzio foi um “poeta de acção”, como escreveu António Ferro, admirador imoderado do poeta italiano? Quase de certeza. D’Annunzio escreveu no fogo e incendiou as almas. A sua poesia era como os seus discursos ou a sua tempestuosa vida amorosa: uma arte marcial. Foi tudo: poeta, aviador, demagogo nacionalista, herói da guerra. Considerou-se o bardo de Itália, só comparável a Dante ou a Leopardi. Mas foi no terreno do confronto que deixou a sua mais bela prosa e poesia. Foi um poeta perdido que viveu numa Europa confusa e contraditória (como hoje).

O seu grande momento de acção passou-se na ocupação, em 1919, da cidade de Fiume, que fazia parte do Império Austro-húngaro, que D’Annunzio considerava fazer parte da Itália e que as potências vencedoras da Primeira Guerra Mundial decidiram oferecer à nova Jugoslávia. É esse o epicentro da vida de D’Annunzio: foi ali que concretizou a sua poesia de guerra. Fiume foi um sonho. Durante pouco mais de um ano cresceu ali uma cidade-Estado, imune a pressões, libertária e sedenta das palavras do seu mestre. É a sua cidade utópica, aquela que António Ferro descreveria nas páginas de “O Século”.

A ocupação nasceu de um sonho: o poeta avançou para ela disposto a redimir a Itália. Afinal ele sempre se viu como o reflexo do seu herói romântico, Garibaldi, que unificara o país. Partiu para lá no seu Fiat vermelho com 186 seguidores. Pelo caminho foi conquistando desertores do exército italiano que tinham ordens para o fazer parar. Ali fez discursos sem parar durante 15 meses, com os seus seguidores de camisa negra, sobre a sua visão de uma Grande Itália.

Mussolini chamar-lhe-ia “o Primeiro Duce”. Mas, por detrás desta poesia política, vivia-se uma orgia dionisíaca, com vinho, ópio e cocaína. Sucediam-se paradas sem fim à luz de tochas e fogo de artificio. Os bordéis estavam cheios. Discorreu sobre a necessidade de um grande conflito de raças para purgar a sociedade com fogo e sangue. Enquanto isso polvilhava-se de perfume.
local transformou-se num laboratório político que atraiu fascistas, futuristas, membros do Sinn Fein irlandês, nacionalistas da Índia e do Egipto e, claro, agentes secretos britânicos. Lenine mandou-lhe caviar e chamou-lhe “o único revolucionário da Europa”. Uma batalha real, com granadas verdadeiras, decorreu enquanto se tocava a Quinta Sinfonia de Beethoven. D’Annunzio declarava guerra ao seu próprio país antes de ser escorraçado por um bombardeamento naval. A eloquência foi, até ao fim, a forma de ser o poeta da acção. Quis criar a “política da poesia”, até porque nessa altura os poetas atraíam as massas.
A sua vida foi uma obra de arte, excessiva, quase sempre. Adorava carros, telefones, aviões e metralhadoras e a velocidade, como os futuristas. Viu na frente de batalha da Primeira Guerra Mundial a carnificina, fez notas sobre a decomposição dos corpos. A morte parecia-lhe sublime, mas gozava a vida nos braços das amantes que se sucediam. Gostava de dizer: “eu sou latino” e defendia uma “política latina”, contra os “bárbaros” alemães e anglo-saxónicos. Por isso nunca gostou de Hitler. “Toda a minha vida foi um jogo de risco”, disse. Ninguém duvida disso.

Ler “O Triunfo da Morte”, escrito em 1894, é como antever aquilo que viria a ser a sua aventura literária e real. A morte e também o amor fascinam-no. Tudo começa quando um casal, Giorgio Ausrispa e Ippolita, passeia por Roma e se depara com um suicídio. A partir daí Giorgio sente que todas as suas certezas colapsam. A cidade passa a sufocá-lo e pensa que a chamada de uma localidade perdida na Itália, Guardiagrele, a cidade de pedra, poderá acalmar o seu temperamento. Reencontra a mãe e as memórias escondidas da sua família.

“Deitado de costas, refletia: Muito bem…eu vivo, respiro. Mas qual é a substância da minha vida? A que forças está subordinada? Que leis a regem? Eu não me pertenço, escapo-me a mim próprio”, escreve D’Annunzio, retratando Giorgio e, no fundo, os seus dilemas eternos. Esta é uma imensa viagem ao interior de um personagem, confrontado por um amor intenso e pelas sombras das memórias e da morte. A vertigem de um destino trágico parece, no final, sintetizar aquilo que D’Annunzio sempre buscou na sua extraordinária vida.
 
Demolir ilusões 
Elvis Costello, um antigo professor que se tornou músico, aproveitou a boleia do punk para se impor. Mas ele nunca foi um radical punk. Os seus caminhos musicais sempre foram mais clássicos, talvez buscando a pop perfeita e, depois, o jazz que sempre o influenciou. O seu novo álbum, “The Boy Named If” (CD Capitol 2022), gravado com a sua banda de suporte, The Imposters, reflecte o seu passado.
Durante a pandemia, em vez de se refugir num universo mais introspectivo, como fizeram muitos músicos, Elvis procura aqui uma aproximação mais agressiva. Desafiadora, poderíamos dizer. As suas canções falam-nos de temas que não nos deixam indiferentes: a vaidade, a violência, a infidelidade, a traição ou a decepção. O tema que dá título ao álbum traz-nos um amigo imaginário, que escapa a todas as consequências das suas acções.
As relações descritas parecem ser de puro interesse: em “My Most Beatiful Mistake”, num dueto com Nicole Atkins, um argumentista diz à empregada do restaurante que a está a ver a fazer um papel num filme. E ela responde-lhe, cepticamente: “I’ve seen your kind before/in courtroom sketches”. O universo musical é o mundo de Elvis: guitarra, bateria, baixo, teclas. Nem falta aqui uma homenagem ao som de Bo Diddley em “Death of Magic Thinking”.
Costello ao longo da sua longa carreira e de mais de 30 discos mostrou que a música, para ele, não tem barreiras: há rock, pop, jazz, R&B, country ou clássica. Mas os seus melhores discos, como este, reencontram-no com o seu passado mais remoto. Os seus dias de glória estão de volta.
Sétima arte
A revista “Animatógrafo” dirigida por António Lopes Ribeiro foi uma forte impulsionadora da indústria nacional, sobretudo no caminho que seguiu ao longo de anos: as comédias mundanas. Neste número de Agosto de 1941 anuncia o fim das rodagens de “O Pai Tirano”, com Vasco Santana e Ribeirinho e produção, claro, da nova produtora António Lopes Ribeiro. Anunciava-se para breve o arranque das filmagens de “O Pátio das Cantigas”. Começava a chamada “idade de ouro” do cinema nacional. 
 
* Jornalista

IN "O JORNAL ECONÓMICO" - 05/02/22

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