22/10/2021

ANTÓNIO CLUNY

 .




A gaiola onde querem

 encerrar a justiça

A jurisprudência que, durante muitos anos, incidiu sobre outro tipo de criminalidade ocorrida em outros meios e contextos sociais, ajuda pouco a lidar com as novas feições da criminalidade que chocam agora a sociedade portuguesa.

Muitos têm sido os casos jurídico-judiciários que, mais recentemente, convocaram a atenção dos portugueses.

Alguns desses casos, para não dizer todos, têm concitado uma crítica mais ou menos fundada, mais ou menos desinformada, por parte dos comentadores habituais.

Escusado será dizer que, por maiores e mais detalhadas explicações técnico-jurídicas que as mais altas entidades judiciais apresentem para o que ocorreu em cada um desses casos, elas não colherão nunca no contexto social atual.

Não se trata, porém, de uma questão de habilidade de comunicação de tais entidades.

O que acontece é que ninguém está à espera de respostas jurídicas para tais decisões, antes de explicações políticas (mais amplas) para os insucessos repetidamente noticiados.

A responsabilidade de tal dessintonia comunicacional reside, também, mas não só, nas ilusórias e empoladas expectativas sobre o papel da Justiça criadas insistentemente aos cidadãos por alguns políticos e por muitos discursos de agentes judiciários.

Por boas e más razões, gerou-se, de facto, na sociedade a ideia de que o funcionamento da Justiça poderia corrigir sempre, com eficiência e acuidade, muitas das iniquidades que em outros palcos, designadamente os políticos e económicos, são cometidas.

É verdade que o bom – diria antes, o normal - funcionamento da Justiça pode ajudar a conter as práticas sociais mais excessivas, violentas ou predatórias, sejam elas as que se relacionam com o abuso dos bens públicos, dos bens comuns e dos bens pessoais.

Não cabe, contudo, à Justiça, que, no nosso sistema jurídico constitucional, se rege por leis estritas e procedimentos formais, superar o condicionamento político, institucional e legal em que deve exercer as suas funções.

Claro está que a Justiça pode – e deve -, a partir do ordenamento constitucional e legal, procurar encontrar, em cada momento, as melhores e mais justas soluções para cada caso concreto.

Todavia, ante a exposição pública a que, por via da específica lógica mediática, a Justiça está submetida, será sempre cada vez mais limitada a possibilidade – e mesmo a vontade – desta de, arrojadamente, moldar a sua intervenção às novas realidades.

Em muitos casos, para se poder elevar acima das circunstâncias mais comuns, a Justiça terá de se socorrer de princípios e valores constitucionais cuja leitura mais adequada e atual, por mais apropriada que seja ao caso concreto, não deixará, também ela, desde logo, de ser encarada pelos media como politicamente comprometida.

Ora a Justiça, quer devido a um discurso ensimesmado em que se deixou encerrar, quer em função de uma crítica política e social externa - manipuladora e também ela autocentrada - tende a evitar assumir, hoje, riscos, na descoberta e execução de decisões e práticas menos correntes, pois, mesmo que oportunas, podem ser interpretadas como facciosas, designadamente quando se trata de casos de grande exposição e repercussão social.   

Muitas das decisões judiciais recentes, e que mais criticadas foram, encontravam-se, pois, à partida, envolvidas por esta gaiola de contextos internos e externos que captura, hoje, a prática do sistema jurídico-judicial.

São tais condicionamentos, que, em rigor, dificultam aos magistrados - por mais ousados que eles possam ser, e eles nem sequer foram formados para isso – voar à procura de soluções mais imaginativas, dinâmicas e condicentes com a novidade e especificidade dos casos que lhes aparecem para resolver.  

Presos entre uma prática judiciária jamais posta em questão internamente, uma jurisprudência que, como é normal, conforma, apenas, as decisões dos casos mais habituais, os magistrados movem-se com dificuldade num mundo novo – e numa sociedade instável e mediática e politicamente motivada – que, assim, ora os critica por excesso de protagonismo, ora os acusa de passividade negligente.

Em rigor, em nenhuma das situações visadas pela crítica político-mediática que envolveu os casos referidos ultimamente se pode falar, com seriedade, da existência de erros técnico-jurídicos.

Mas isso jamais é, ou será, reconhecido pelos media, cuja maioria dos comentadores, de resto, pouco sabem da matéria, e que, na realidade, como referi, nem sequer é dela que querem tratar.

O que se pode, portanto, apontar à Justiça é – isso sim - o desfasamento dos seus procedimentos comuns ante a emergência de casos e sujeitos criminais novos.

Alterar tais procedimentos, tendo em vista ultrapassar mais eficientemente os condicionalismos provocados por essa nova criminalidade e os seus poderosos sujeitos, poderia, sem dúvida, resolver algumas situações, mas suscitaria, também, de imediato, a costumada crítica de protagonismo justicialista.

Isso aconteceu, frequentemente, aliás, em outros casos não muito distantes, e os magistrados ficaram, por isso, conscientes das leituras e consequências sociais corrosivas de tais iniciativas.

Deixar o sistema funcionar como de costume não resultou, porém, melhor.

Originou, como parecia óbvio, a crítica contrária: a de laxismo. 

Muitos magistrados, assim confrontados entre estas duas contingências, queixam-se, atónitos, de estarem a ser “presos por ter cão, e presos por não o terem”.

Reconheçamos que emparedados por uma crítica mediática ambivalente - e sempre flutuante de acordo com as simpatias ou antipatias político-sociais do momento - muitos magistrados sentem-se condicionados, ou mesmo incapazes, de formular e pôr em prática respostas jurídicas inovadoras e eficientes, que sejam, em simultâneo, socialmente inteligíveis.

Por essa e outras razões que, por ora, não vêm ao caso, eles sentem-se, na verdade, com pouca legitimidade social – que não constitucional – para, sem uma continuada reformulação das leis, tomarem decisões juridicamente inovadoras e, hoje, eficazes.

Num país onde tanto se fala, a propósito e a despropósito, na independência e na autonomia dos magistrados judiciais e do Ministério Público, talvez fosse bom revisitar e analisar, por isso, os efetivos condicionalismos do seu exercício concreto (o não legislado) e refletir sobre como aqueles conceitos constitucionais são, na prática, vividos, ou não, pelos próprios.

Talvez os nossos magistrados se surpreendessem com as conclusões que daí se pudessem tirar.

* Jurista. Magistrado do Ministério Público

IN "i" - 19/10/21

.

Sem comentários: