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*Professora Emérita da Universidade do Porto
IN "PÚBLICO"
27/07/18
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Nunca leu Os Maias?
Não sabe o que perde!
Não pode acontecer que professores e o Estado escolham o caminho menos trabalhoso, em detrimento do mais qualificante.
A questão na ordem do dia de o romance Os Maias deixar de
ser, no 11.º ano do ensino secundário, leitura obrigatória, mas apenas
oferecido em alternativa a qualquer outra obra de Eça de Queirós,
segundo documento colocado em discussão pública pelo Ministério da
Educação, designado “Aprendizagens Essenciais”, reduz-se em última
análise a: Quem nunca leu Os Maias não sabe o que perde!
Antes de mais, não sabe que perde o privilégio de usufruir de uma das
obras de arte maiores da cultura portuguesa e, em consequência, não
conhece uma peça angular do património cultural português. Porque é
disso que se trata: uma obra do nosso património, de importância
idêntica ao Palácio da Pena em Sintra, ao Teatro Nacional D. Maria II em
Lisboa, à ponte D. Luís I e ao Palácio das Carrancas (sede do museu de
arte oitocentista, Soares dos Reis) no Porto, aos quadros de Malhoa ou
Columbano, às obras de Bordalo Pinheiro, para referir apenas alguns
exemplos maiores de património do sec. XIX. Ora, não conhecer o Palácio
da Pena ou a ponte D. Luís I ou as obras daqueles artistas plásticos é,
convenhamos, ignorar peças que nos identificam como nação, que definem a
nossa identidade no quadro da cultura romântica e do século XIX europeu
e que muito ajudam a compreendermo-nos hoje.
Os Maias,
publicado há 130 anos, não há que temer dizê-lo, é um dos grandes
romances do património europeu do século XIX, que só não é tão lido ao
nível dos grandes romances de Flaubert, Dickens ou Balzac porque foi
escrito em língua portuguesa, uma língua dificilmente reconhecida ainda
hoje como língua de cultura. É um romance belíssimo, a obra prima de Eça
e a obra canónica por excelência do romance oitocentista português, um
romance no qual ele próprio se propunha, como disse, pôr tudo o que
tinha no saco...
Nele se cruza uma impiedosa pintura da sociedade portuguesa e dos
seus tipos humanos e sociais com a história trágica de um amor
incestuoso, símbolo do círculo fechado em que Carlos, Maria Eduarda e a
família Maia estão encerrados, presos nas teias do destino. E a
simbologia desse círculo fechado alarga-se ao país, encerrando as
próprias elites protagonistas do romance num tempo parado, imobilista,
gerador de uma experiência diletante de desencanto e desistência. Eça
denuncia a impotência das elites sociais dominantes e vinga-se delas
através da própria escrita irónica do romance e também da confusão
auto-irónica de si mesmo com a personagem de Ega, o qual, dono da
ironia, mostra o mundo na sua duplicidade trágica e cómica.
Só a arte, e dentro dela a grande literatura, capta a duplicidade
complexa da realidade humana e social, permite um conhecimento
alternativo do mundo, por isso não é dispensável e por isso é
intensamente formativa. Há uma certa compreensão do século XIX português
e dos tempos que lhe seguem, assim como das singularidades que o
habitaram, que não podemos captar só através do discurso
historiográfico. Eis também por que um clássico como Os Maias
suscita sempre novas interpretações, nunca ficando definitivamente
encerrada a sua leitura. Eis por que a educação literária é contemplada e
muito bem nos programas de Português.
Mas, dir-me-ão, e não se
pode ter a experiência da grande literatura queirosiana com um outro
romance, um conto, uma crónica ou até uma carta? Pode, porque Eça tem em
todos estes géneros verdadeiras obras-primas. A questão não é essa; a
questão nem sequer é saber se não seria mais fácil para os estudantes
penetrar na leitura queirosiana a partir de outras obras. Talvez até
fosse. A questão, do meu ponto de vista, é saber se é admissível que num
programa que não oferece nenhuma outra leitura integral de um romance
do século XIX (de Garrett, Herculano e Camilo serão lidos apenas
excertos de um romance de um deles), a não ser um romance de Eça, é
aceitável que não se leia a obra magna do autor e o romance canónico do
século XIX português, Os Maias –? Episódios da Vida Romântica.
E não se leia em nome de quê? Em nome de uma sistemática menorização
dos estudantes e dos próprios professores e do sistemático acomodamento a
uma prática de ensino-aprendizagem que não insista no esforço, na
dedicação, no trabalho necessários ao desenvolvimento do conhecimento,
porque é disso que se trata, desenvolvimento do conhecimento, com
educação literária e consequentemente estética dos estudantes, através
do contacto com uma preciosa obra de arte. E em nenhuma época,
convenhamos, estudantes e professores tiveram ao seu alcance tantos
meios para amenizar e potenciar o seu trabalho, independentemente das
múltiplas circunstâncias que afastam os estudantes da leitura. O que não
pode acontecer é que professores e o Estado escolham o caminho menos
trabalhoso, em detrimento do mais qualificante.
Não será ainda
despiciendo pensar que é bem possível que para muitos estudantes, se não
para a maioria que não provém de sectores sociais privilegiados, essa
seja a única oportunidade que terão na vida para usufruírem dessa obra
magna da literatura em língua portuguesa (como também terá acontecido
com as obras canónicas de autores como Gil Vicente, Camões, Pessoa...),
que a escola democrática tem obrigação de lhes facultar se de facto quer
democratizar o conhecimento e arte.
P.S.: Duas breves observações ainda a respeito destas “Aprendizagens Essenciais”:
1. O desaparecimento do conto como género nos
programas de Português do 12.º ano, no qual estava prevista a leitura de
um de três contos (de Manuel da Fonseca ou Maria Judite de Carvalho ou
Mário de Carvalho), não me parece ser uma opção desejável, até por se
tratar de um género breve, que os jovens nas sociedades de hoje,
sociedades do fragmentário e da aceleração, nitidamente privilegiam,
como é possível constatar na blogosfera onde narrativas breves e
micronarrativas ocupam lugar de relevo. Valeria então a pena cavalgar
nesta preferência, que de resto ajudaria a colocar o conto, junto dos
leitores portugueses, num patamar de género nobre que lamentavelmente, e
ao contrário do que acontece na cultura anglo-saxónica, não tem, dando a
ler aos estudantes uma obra integral de outro(s) ficcionista(s) do
século XX para além de Saramago. E neste caso poderia ser bastante
indutor de leitura e bastante exequível pôr três grupos de estudantes
dentro da sala de aula a ler cada um dos três contos.
2. A
manutenção no programa de 12.º ano de Português da obrigatoriedade da
leitura integral de um de dois romances de José Saramago, Memorial do Convento ou O Ano da Morte de Ricardo Reis,
parece-me, essa sim, discutível. Aqui, na narrativa contemporânea (do
século XX), não seria de considerar a possibilidade de estudar em
alternativa autores romanescos igualmente marcantes, pese embora nenhum
deles, a não ser Saramago, ter arrecadado um Prémio Nobel, bem sei?
Romances de Agustina Bessa-Luís ou Aquilino Ribeiro ou Carlos de
Oliveira ou Jorge de Sena ou José Cardoso Pires ou Vergílio Ferreira ou
Vitorino Nemésio... não poderiam ser ponderados? E também aqui não seria
interessante e produtivo criar três ou quatro grupos de estudantes que,
dentro da mesma sala de aula, se ocupassem de três ou quatro leituras
distintas? Não poderia também daqui resultar indução de leitura?
*Professora Emérita da Universidade do Porto
IN "PÚBLICO"
27/07/18
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