A vida verdadeira
Eu, por acaso, gostava mesmo de saber, afirma
Ricardo com um sorriso, meio envergonhado. A turma não reforça o
interesse, a vontade de saber. Partem do princípio que já se sabe, é
algo adquirido, ou que não interessa assim tanto conhecer. O que parece
estranho é que estar num curso de desporto subentende que a génese do
desporto constitui um conhecimento indispensável, obrigatório para
qualquer estudante universitário pois, na realidade, antes de chegarem à
Universidade não houve interesse ou oportunidade para conhecer como se
desenvolveu este fenómeno social fundamental da sociedade moderna.
Há
40 anos que estudamos o desporto. Esse estudo não começou connosco,
começou antes, com os mais velhos que me precederam, que passaram o
testemunho assim como o exemplo, o interesse e o respeito pelo
conhecimento, pelo saber. Voltarei a esta questão. Por agora,
centremo-nos na dificuldade de compreender que sempre acompanha o que
consideramos adquirido ou, também, quando se acredita que basta
perguntar para conhecer – por mais boa vontade que haja, apenas podemos
traçar em linhas gerais a génese de algo que é a sociedade que
conhecemos. A par da desorientação em que por vezes caímos, dificuldade
em compreender o fenómeno em estudo, em penetrar aquilo que se esconde
sob a aparência do óbvio, impõem-se o pasmo diante daqueles que sabem
tudo, perceberam tudo e, com imenso à vontade, um sorriso e uma
compreensão inesgotável, dispõem-se a explicar-nos tudo mas,
verdadeiramente, tudo aquilo que não entendemos – o que se oculta por
trás do óbvio. Acontece, no entanto, esses apenas nos levam a
compreender que, em estado mais lastimável do que o nosso, julgam ter
compreendido tudo e, sem saberem, não perceberam grande coisa.
Não
nos referimos à sensação de total perplexidade quando, decididos a
iniciar uma nova experiência no domínio do desporto se avança, por
exemplo, pela prática da vela - depressa compreendendo que tínhamos de
aprender tudo, absolutamente tudo: a terminologia técnica, a
nomenclatura, a análise e a leitura da situação, as técnicas básicas de
aparelhar e desaparelhar a embarcação, atender às velas, o estai, o
leme, as espias, as adriça, a retranca, a temida retranca, as escotas,
bombordo e estibordo, as mareações, os ventos, as manobras de orçar e de
arribar, etc., etc. O equilíbrio, a velocidade, a coordenação, a força,
a aplicação da força, o jogo de forças entre membros superiores
(braços), os membros inferiores (pernas) a flexão, a flexão total, a
atenção permanente ao movimento permanentemente variável, para não voar
borda fora, a noção de equipa e a questão fundamental da liderança. Quem
manda é o skipper e não há discussão. Mesmo porque, provavelmente, não
haverá tempo para isso mal se levante um pé de vento que a todos obriga a
uma concentração máxima – de movimentos, da atenção. Se tudo isto, e já
não é pouco, se passa sobre a embarcação, há que aprender ao mesmo
tempo a ler, interpretar, procurar todos os sinais no exterior, no mar,
no céu, à superfície da água. A isso tudo se prende a tomada de decisão,
sempre em movimento, na mais vertiginosa das velocidades pois 34 nós
podem parecer duas vezes mais se a maré está a encher ou a vazar, se
estamos junto à costa ou a meio do nada, se vamos a favor (ao largo) ou
contra o vento (bolina) se pretendemos entrar na marina, amarar,
manobras que também reclamam nervos de aço e enorme sangue frio para
saltar para a o cais e amarrar, sem demora, 8 toneladas de embarcação.
Após os momentos iniciais, não já aqueles em que caímos à água no rio
Tejo, nadamos para escapar ao barco em si, no golpe certo do corpo
procuramos escapar ao velame, aprendemos a virar o casco, ...até os
momentos em que começamos a tentar velejar mais a sério, compreendemos
que, na verdade, não sabemos nada. Que a especialização nos desportos,
que a competição, a alta competição parece impôr, longe de nos preparar
para ‘tudo’ limita-nos, afinal, através da repetição, da delimitada
variação dos exercícios, na ideia assente que a mera circunscrição deste
ou daquele aperfeiçoamento, desta ou daquela correcção do gesto
técnico, da biomecânica propriamente física e mecânica do gesto, seria a
forma correcta de actuar, de executar, de fazer.
É também por
isso que é nas idades mais baixas que se deve dar a oportunidade a que
cada criança, cada jovem, tenha a possibilidade de experimentar vários
desportos e, depois, então, escolher. Seria bom que todos fossem
obrigados a aprender a velejar – disciplina obrigatória a nível
nacional, formação fundamental de vida, de compreensão da multiplicidade
de factores que fazem não só um bom velejador mas um bom cidadão, um
bom ser humano e social, a aprendizagem do valor do trabalho em comum,
de equipa, do respeito pelo outro, da importância e da necessidade do
outro, do ser amigo. Recordo Alfredo, do Algarve, jovem adolescente que
não hesitou em lançar-se à água para salvar a velejadora em formação que
acabara de sair borda fora – no entanto, exímia nadadora! A par de uma
formação o mais rica possível, a possibilidade de escolha das
actividades desportivas de lazer, a dedicação posterior a uma possível
especialização, a competição. Nada disto é novo. Terá ficado esquecido?
Nada disto é novo e as gerações mais velhas, aquelas que nos vão
deixando no trabalho, na vida, sabiam-no bem. Talvez por isso tivessem
mantido aquele ar de meninos, já depois de vidas feitas, quando se
juntavam e riam e brincavam a meterem-se uns com os outros, por causa
dos jogos que haviam jogado, a simplicidade ligada ao facto de não terem
de parecer aquilo que não eram - até porque todos se conheciam
demasiado bem. Que o desporto tem destas coisas, não há hipóteses de
andar a fazer de conta por muito tempo, de se levar a si próprio a
sério. Observá-los nestas situações, em profundo divertimento, alheios
aos outros, àqueles que não pertenciam ao círculo mágico, será para
sempre uma das imagens mais ricas, mais vivas, mais profundas de uma
geração de autênticos pioneiros da área profissional onde, por escolha
ou acidente, acabaram por construir as suas carreiras, as suas vidas.
Não serão, decerto, heróis, mas viveram sem qualquer dúvida tempos
heróicos. Tempos em que era preciso fazer tudo pois pouco, muito pouco,
havia sido feito antes deles. Estamos nos fins dos anos 40, 50, 60, 70.
Todos da mesma escola, o INEF, todos formados na mesma cultura, entre a
higiene e a moral, o desporto e a rebeldia. Não brinquem com eles.
Observem como actuam, como falam, como riem, o que dizem – o que
escreveram e escrevem ainda.
Referimo-nos – sim – à necessidade
de conhecer e de compreender, acessíveis através de estudos cada vez
mais rigorosos e exigentes, um fenómeno cuja complexidade emerge desde
as manifestações mais antigas e que é indispensável aos que pretendem
desenvolver uma actividade profissional nestes domínios. E que qualquer
pode desenvolver nos extensos campos dos desportos. Contudo, se tiver
estudado o fenómeno nos domínios que a história, as ciências sociais em
geral aprofundam, terá uma compreensão mais precisa desse fenómeno
social e humano e, diante da tomada de decisão que tiver de concretizar,
estará melhor preparado para o fazer de forma mais correcta, isto é,
com maior adequação, com melhor resultado – caso se pretenda que através
do desporto a qualidade de vida seja melhor.
Uma introdução tão
grande para quê? Para dizer que sabemos pouco, ou quase nada, mas
sabemos alguma coisa, talvez o essencial. É que para compreender o
desporto, há que fazer desporto e, ao mesmo tempo, estudar o que é o
desporto para os homens, as mulheres, as crianças, os mais velhos. Desse
modo, o que se conhece por meio do estudo de ordem mais teórica e o que
se conhece através de uma experiência prática completa-se,
consolida-se, de alguma forma, faz sentido. Praticar desporto, cair e
levantar-se, magoar-se e prosseguir, aguentar a dor, o esforço,
persistir, resistir, ganhar e perder, sentir a vergonha e o embaraço e
superar essas e outras limitações, descobrir e enfrentar os limites e
ultrapassá-los, descobrir a cooperação, a generosidade, a iniciativa, a
escolha. É olhar o perigo, medir o risco, sentir o medo e seguir em
frente. Na verdade, atirar-se para a frente. Tudo isto, com os outros,
diante dos outros. Mas estaremos a falar de guerra ou de desporto? É
necessário lembrar que o desporto, no desporto, se trata da
representação de um combate, de um confronto, de um combate simbólico,
uma coisa a que as crianças chamariam ‘um fazer de conta’. Aí, a coisa
começa a complicar-se: o que é exactamente isso da representação, isso
do simbólico, isso do ‘fazer de conta’? Isso é uma parte do que é
preciso estudar e que só se procura, só se encontra se já se tiver
passado por isso. É que só encontramos o que procuramos. Quanto a isso,
não há nada a fazer. É a vida. O homem, enquanto ser vivo, tem
necessidade natural, biológica, de movimento. Enquanto ser vivo de
relação, ser humano e social tem necessidade de movimento segundo
formas, ritmos, estruturas que se organizam consoante as culturas em que
estão inseridos, de que fazem parte. O jogo, a arte, as diversas
maneiras de assegurar a sobrevivência, são manifestações dessa
necessidade básica e profunda. Contudo, tão profunda quanto a
necessidade de movimento biológico, físico, propriamente dito, há a
necessidade de avançar, de compreender, de aceder a um sentido para a
sua existência e que a prática do desporto pode oferecer. É importante
sublinhar isto. Embora o desporto não seja uma solução para tudo, nem
para todos os problemas do homem e do mundo, este é o domínio em que
actuamos, pelo estudo, pela formação, pela especialização – a diferentes
níveis. Além do mais, este é um elemento de cultura comum a todos, uma
língua que a maioria entende, logo, um meio de comunicação excepcional.
O
desporto constitui-se numa oposição. Representa uma oposição. Uma
oposição contra um adversário, um adversário que pode ser um único
oponente, uma equipa, um elemento da natureza ou o próprio indivíduo. De
facto, sempre o próprio indivíduo. Contudo, cada um de nós não existe,
não teria qualquer hipótese de sobreviver, de crescer, de reproduzir-se,
de um viver de relação – sem os outros. Cada um de nós precisa de cada
um dos outros para ser gente. O desporto é uma das maneiras em que tudo
se organiza de modo a estar com os outros, a aprender com os outros.
Aprender os outros? Sem dúvida. Mas através dos outros, nessa
proximidade, nessa intimidade pública, social, aprendermos-nos a nós
próprios. Sempre nós e sempre outros. Há várias definições de desporto. A
de Coubertin, muitas vezes ainda citada, corresponde a uma outra época,
a um outro desporto, um desporto que começava a ser tomado em conta
como algo importante e necessário. Esta noção, do sociólogo alemão
Elias, parece-nos suficientemente alargada e clara. Pode então tudo ser
desporto? Quando se chega aqui, é o momento de indicar que é preciso
estudar, que não chega descobrir isso pois o isso (abreviemos) não
existe sem aquilo. E aquilo é o quê? Bom, aquilo pode ser muita coisa,
mas realmente muita coisa, alguma da qual que já se começou a estudar há
muitas décadas. E para que ‘muita coisa’ tenha começado a ser estudada,
teve de haver quem se interessasse por ‘alguma coisa’, concentrasse a
sua atenção e o seu tempo nessa matéria, a estudasse. Como cada
indivíduo não existe isolado, essa é uma impossibilidade que a
sociologia vinca (e que dá razão de existir à própria sociologia), algo
houve em torno daqueles que se dedicaram ao estudo de certas coisas para
que certas coisas fossem estudadas – por exemplo, o desporto. Logo que
estas práticas (comportamentos regulares) desportivas são assinaladas
por um conjunto de indivíduos interessados na educação dos mais jovens e
atentos, ao mesmo tempo, às diferentes necessidades da sociedade, foi
preciso encontrar uma legitimidade social e fundamentá-la. Tudo isso
levou tempo, muito tempo.
A mudança na vida colectiva não ocorre
de um dia para o outro. Para tanto, era indispensável conhecer bem
profundamente o que se identificava como algo interessante. Estas
práticas não foram criadas pelos jovens. Estes reproduziam o que haviam
visto os mais velhos fazerem. E os mais velhos faziam aquilo que era
tradicional fazerem, que haviam encontrado nos hábitos e nos costumes da
sua região, da sua vida familiar, da rede de relações em que se
encontravam inseridos desde que se lembravam de existir. Um fenómeno da
dimensão que conhecemos, da natureza que descobrimos, das mudanças que
vai introduzindo, não pode fixar-se numa definição que se imponha. Qual a
perspectiva que pretende conhecer? O domínio do jogo, a expressão
social, a representação, o drama, a tensão? Como separar cada uma
destas expressões da vida de relação e manter o respeito, o rigor, por
aquilo que se procura conhecer tal como é – e não como gostaríamos que
fosse – mais simples, mais controlável, menos extraordinário,
imprevisto? Além do mais, não acontece sozinho, nem por acaso. Nem foi
inventado por ninguém que tenha decidido um dia, em que acordou bem
disposto (desejamos nós!), e tenha lançado mãos à obra e decretado: ‘eis
a minha obra: o desporto!’. Ou decidido: ‘Hoje eu vou inventar o
desporto!’. Nada disso. O desporto é um fenómeno histórico em curso, é
uma construção de todos, em todos os momentos em que corrigem aqui,
decidem que vai ser assim, que a partir daqui os limites passam a ser
estes, um processo que se encontra estabilizado mas prossegue, está
longe de estar encerrado. E longe de acontecer isolado.
Parece
que o desporto avança por aí, na sociedade, no tempo, no espaço europeu,
sem jamais se cruzar com a ginástica, a educação física, a higiene. De
acordo com os nossos estudos, estudos que não começaram agora (isto é,
hoje, ou agora, ou connosco), o movimento, o exercício, a actividade,
associavam-se a algo benéfico, positivo, favorável ao equilíbrio geral
daqueles que a ele se dedicavam por razões de necessidade ou de
divertimento, algo bom para a saúde. Este era um facto observado, um
dado empírico, um conhecimento construído através da experiência. Aliás,
a palavra desport encontra-se em França a partir do século XI, antes
disso não existia, assim como o verbo desporter. Significa recreações ao
ar livre. Todo o tipo de recreações efectuadas ao ar livre, mesmo
aquelas que eram utilizadas para preparem os mais jovens da nobreza nas
lides da vida militar futura – a guerra como a única ocupação digna da
nobreza. Para além da equitação, jogos diversos a cavalo e a pé, com
lança, com a preocupação de aprenderem a defender-se, a defender e a
atacar. Mas, também, a participação em jogos populares, os jogos em que
parte da população masculina participava em momentos particulares do
ano, da vida local, da vida familiar. Ou danças, populares ou corteses,
brincadeiras e jogos como, por exemplo, a péla, a crosse, a bilharda e
outros. Guerra e lazer, para a nobreza, trabalho e ócio, para a
população em geral. Porém, a oposição, o confronto presente. E a vontade
de todos de invadir outros campos do viver e transformar aquilo que se
encontra impregnado do que é corrente, comum, sem chama. O rastilho para
a explosão de um prazer que se situava no âmbito do real, o outro lado.
O mundo do risco, do drama, da tensão e da vida verdadeira. Dedicar
algum tempo à leitura sem pressa do ensaio de Johan Huizinga, holandês, e
reitor da Universidade de Leyde. Homo Ludens é um clássico fundamental,
de 1938. Trabalho editado em português no ano de 2003, pelas Edições
70. Ler, reler Huizinga, jamais será tempo perdido. Não o ler, sim. Um
desperdício.
Muito bem, em termos muito gerais. E a ginástica? E
a higiene? Como se impõem como uma realidade, um fenómeno social? É
essa uma outra história? Depende do ponto de vista, da perspectiva –
como dizemos: depende da pergunta inicial. Segundo aquilo que temos
vindo a estudar, a investigar, os dados e os estudos que temos vindo a
reunir e o que temos vindo a pensar ao longo destas quatro décadas, a
ginástica, a higiene, e o desporto, a medicina, são parte da mesma
história. Ou seja, estas manifestações da vida social, da realidade
materializada em factos que são justamente a ginástica, parte da
higiene, o desporto, parte da vida natural e colectiva, a medicina,
logo, a vida social – partilhada, de todos e entre todos, vão ao
encontro das mesmas questões: melhorar as possibilidades de estar vivo e
viver, resistir aos limites impostos pelo carácter temporário da vida,
dar às sociedades a capacidade de fortalecerem as suas forças para se
manterem vivos. Como estes são fenómenos humanos e sociais, o movimento
associado à ginástica inspira-se no conhecimento médico grego antigo,
toma como referência, e legitimação, o modelo grego. A ginástica é parte
da higiene – na Grécia Antiga como nos países europeus que a
desenvolvem desde os fins do século XVIII. Através da ginástica, aliás
das diferentes propostas de ginástica desenvolvidas, o que se visa é
activar o movimento, (soa a pleonasmo!) conduzido e moderado, em
crianças enfermiças, crianças cujas vidas eram dominadas pela fraqueza,
atreitas à doença, numa palavra: frágeis. Até poderem atingir a idade de
fazerem qualquer tipo de actividade, fosse ela laboral ou desportiva,
caso desejassem entregar-se a práticas de lazer inovadoras, havia que
promover condições de assegurar a sobrevivência, havia que ganhar
forças, aguentar-se nas pernas, organizar os movimentos e os gestos,
descobrir o corpo próprio, aprender a estruturar-se no tempo (o ritmo) e
no espaço (o próximo e o distante), a coordenação das maneiras de
fazer, isto é, as diferentes formas de encadeamento do movimento, dos
diferentes modos de movimentar-se no tempo e no espaço. Havia que
promover, em primeiro lugar, a vontade de agir. O exercício dessa
vontade. E se as crianças eram, em geral, enfermiças, os adultos, os
pais e as mães, não seriam muito saudáveis certamente. Uns por umas
razões, outros por outras – em comum, um quadro de vida colectiva feito
de grandes necessidades.
Tanto o desporto quanto a ginástica
desenvolvem-se numa sociedade europeia marcada pela fraqueza física e
psíquica, a debilidade, a doença. A miséria generalizada – conhecemos
bem o que se verificava em Portugal, através do trabalho de Jorge
Crespo, A História do Corpo (1992). O que se verificava em Portugal,
agravado pelo atraso, não era muito diferente do que se encontrava
noutros países europeus, nos países nórdicos, na Rússia, entre a própria
população inglesa, britânica. Desporto e ginástica: ambos procuram, em
momentos simultâneos, a ritmos diferentes, em lugares diferentes, buscam
os mesmos fins, fortalecer, agregar, desenvolver a iniciativa, a
vontade de actuar. Se conscientemente os ingleses se entregam aos
desportos nos seus tempos de lazer, na base e na tradição desses
desportos está a necessidade de desenvolverem actividades que contribuam
para o encontro com os outros, o enfrentar das más condições
atmosféricas, a determinação em vencer a inércia, a valorização da
acção. Revestem-se de cultura, são os costumes, a ética associada à vida
activa, ao trabalho físico. No caso da ginástica, na verdade, das
ginásticas, elas provêm dos esforços de médicos e de pedagogos, muitos
destes filósofos e, também, físicos (isto é, médicos) para pensarem em
formas de contribuir para o fortalecimento das crianças em sociedades
com níveis de mortalidade infantil assustadores e formas essas
concebidas, por via intelectual, enquanto parte integrante da educação.
Toda esta edificação teórica (explicação dos benefícios em bases
científicas ou empíricas, justificação social e educativa) era
estabelecida, na verdade possível, com base nos conhecimentos da
tradição cultural grega onde a ginástica, parte dos recursos de
prevenção da medicina grega, era comum na educação em geral e, em
particular, dos jovens efebos (em idade de prestarem o que equivalia ao
serviço militar, de se prepararem para defenderem a sua cidade-Estado).
Esse era o modelo primeiro, a referência tomada como ponto de partida.
Filósofos e físicos, homens dedicados ao pensar da vida e da existência,
da doença e da morte, implicados no mundo do vivido e constrangidos
pelas limitações da medicina, uma ciência feita de saber empírico – de
uma maneira geral, por toda a Europa.
O desporto, os jogos,
jogam-se nos campos, progressivamente nos territórios limitados das
Public Schools (equivalente grosso modo às escolas secundárias mais
recentes). A ginástica, nos espaços interiores, no projecto e nas
tentativas de concentrar a atenção num campo reservado, privado, da vida
e da morte mas fechado ao acto, ao movimento conduzido pelo
conhecimento médico comprovado – o corpo. O lugar da doença, dos males,
dos medos, da morte. Um conhecimento que não se confrontava apenas com
os limites da própria medicina, das próprias técnicas, dados suficientes
para não confiar com facilidade nas propostas médicas higiénicas e
educativas de salvação. O corpo, tomado no seu território privado,
verdadeiramente político (a única propriedade, a única ferramenta, a
única possibilidade de assegurar o viver pelo labor, a labuta conhecida)
opunha igreja e ciência, poderes que se sobrepunham na luta pela
sobrevivência daqueles em que a fragilidade, a par da debilidade,
deixava homens, mulheres e crianças, entregues a si mesmos. Campo da
vida, do prazer, da dor e do sofrimento, as mentalidades e as barreiras
sociais, onde a igreja havia semeado e fertilizado o universo do medo,
haveria que apresentar provas da validade, da garantia das propostas
médicas e higiénicas materializadas nos diferentes ginásticas propostas.
Enquanto isso, em Inglaterra, rapazes e homens arrojavam-se pelos
campos em jogos viris dominados pelo divertimento, a afirmação das
supremacias masculinas, a confrontação socialmente controlada de forças e
de rivalidades, endurecia corpos e vontades, avançava sem outras
dificuldades para além da argúcia e das capacidades de uns e de outros.
Um outro jogo de forças, frontal, lugar onde a imortalidade desafiava a
morte.
Perante a impossibilidade de encontrar um conhecimento
terapêutico sólido na ciência médica, a higiene era o recurso que se
impunha. A arma de prevenção mais acessível, possível, contra a lentidão
no avanço dos estudos de uma medicina adequada às necessidades de
populações e de sociedades bastante mais complexas do que aquelas em que
as teorias médicas gregas – tratados de Hipócrates e de Galeno –
vigoravam em geral na Europa ainda nos finais do século XVIII. Enquanto
demoravam as descobertas, os avanços, as propostas e os fundamentos
cientificamente seguros, só restava aos médicos, à medicina, o caminho
da higiene e, dentro desta, a ginástica. Uma forma médica e educativa de
remediar os males, de melhorar o que se possuía. Era pouco, muito
pouco. Era, no entanto, o possível. Interessante é assinalar, por agora,
que estes dois domínios da vida social, médica-científica e económica
se encontram entrelaçados desde os seus inícios, uma génese radicada
numa visão do mundo comum.
* Professora Agregada da Universidade de Lisboa, Faculdade de Motricidade Humana
IN "A BOLA"
29/03/17
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