A regra de ouro manchada
A campanha de Trump pode estar a colapsar com o peso da sua história pessoal, mas um motivo importante que o levou até aqui foi a mentira que alegava que os trabalhadores norte-americanos iriam beneficiar da construção do muro.
"Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti". Um
conceito simples e lógico – uma forma simples de resolver um dilema
moral difícil. Ainda assim, numa altura em que distinguir o certo do
errado parece mais difícil que nunca, este postulado clássico – a "Regra
de Ouro" – parece estar a deixar de estar na moda.
A
norma ética da reciprocidade penetra na história humana, começando com
as antigas civilizações egípcias, da Grécia, da Índia e da China. Esta
norma está entre os tópicos intelectuais que ligam os ensinamentos das
maiores religiões e os filósofos ao longo dos anos, desde o clássico de
Roma Séneca até Jean-Jacques Rousseau e John Locke, e até Jean-Paul
Sartre e John Rawls.
A
Regra de Ouro é o alicerce da nossa compreensão moderna dos direitos
humanos universais e é o centro do contrato social moderno. É o ponto
inicial das nossas interacções uns com os outros dentro das nossas
comunidades e numa base global. É nela que está apoiado o surgimento da
actual economia da partilha, de que a Uber e a Airbnb são exemplos. Esta regra também guia as nossas relações pessoais.
Mas
a Regra de Ouro está a ser atacada e aqueles que têm mais influência
estão a liderar esse processo. Os políticos, mesmo os de um mundo
supostamente de democracias esclarecidas, estão a recusar-se a dar
refúgio a pessoas que estão desesperadas a fugir de uma guerra brutal;
os políticos estão a fazer um esforço pequeno, se é que estão a fazer
algum, para abordar as elevadas e crescentes desigualdades económicas e
estão todos a ignorar os factores que levaram ao surgimento de
movimentos dos direitos civis como o norte-americano Black Lives Matter.
Esta
falta de empatia é assustadora e não está limitada aos políticos. Numa
altura em que os negócios têm uma grande – talvez excessiva – influência
mundial, as empresas, na busca por lucros e poder, frequentemente
negligenciam as suas próprias obrigações sociais.
Consideremos
o caso da Theranos, uma empresa biotecnológica fundada por Elizabeth
Holmes em 2003 que prometeu revolucionar os testes de sangue. Durante
vários anos, os dispositivos de testes de sangue "Edison" da empresa
foram louvados como inovadores. A Theranos tinha reputáveis
financiadores, parcerias com um grande número de farmácias e uma
administração que parecia muito impressionante no papel. A sua avaliação
disparou para nove mil milhões de dólares.
No ano
passado, a verdade foi conhecida: a Theranos era só espelhos e fumo. Não
só a maioria dos testes laboratoriais que a empresa oferecia eram
feitos em máquinas tradicionais, como muitos dos resultados que produziu
eram imprecisos. De facto, mais tarde foi revelado que a Theranos parou
de usar todas as máquinas Edison no Verão de 2015 e anulou os
resultados obtidos através destes equipamentos emitidos desde 2014,
enviando dezenas de milhares de relatórios corrigidos a médicos e
pacientes.
Mas a Theranos não podia anular este dano. Era,
afinal de contas, da indústria de cuidados de saúde; não vendia meias
ou sopa. Os seus erros tiveram consequências no mundo real para muitos
pacientes, cujas decisões médicas foram baseadas em dados errados.
É
difícil compreender a arrogância e a indiferença grosseira, para com
seres humanos, que permite a um CEO e à sua equipa de gestão brincar com
a saúde e com as esperanças das pessoas de tal forma. Holmes, que
gabava a transparência da sua empresa e que revelou a sua elevada
avaliação muito depois de saber que as máquinas Edison estavam a
diminuí-la, não quebrou apenas a Regra de Ouro; derreteu-a.
E ela tinha uma grande parte da empresa. Os Panama Papers
– os ficheiros divulgados da quarta maior firma de advogados offshore
do mundo, a Mossack Fonseca – deu uma visão sobre o quão longe as
pessoas estão disponíveis a ir para esconder os seus activos e evitar
pagar impostos. Grandes multinacionais como a Apple, a Amazon e a
Starbucks estruturam os seus negócios de forma a minimizar o pagamento
de impostos de tal forma que agora enfrentam sanções nomeadamente da
União Europeia. O New York Times divulgou recentemente que o candidato
às eleições presidenciais norte-americanas Donald Trump é também um
entusiasta da evasão fiscal.
Trump
apelida a evasão fiscal de "inteligência". Muitas pessoas, incluindo
eu, chamam-lhe egoísmo, irresponsabilidade e uma quebra no contrato
social que lhe permite, e à sua família, acumular riqueza. Qualquer
sociedade que faça da sua imprudência e de um comportamento que apenas
olha para a sua conveniência uma virtude, não funciona, muito menos é
próspera.
Ainda assim, tal
comportamento é cada vez mais comum, com consequências sérias. No Reino
Unido, os líderes políticos alimentaram receios e fizeram promessas
impossíveis – dando origem ao voto pelo "Brexit" da União Europeia. O
novo presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, lançou o que é,
essencialmente, uma guerra aos direitos humanos, enquanto persegue o
caminho do isolamento através de um comportamento agressivo em relação a
outros países.
A campanha de Trump pode estar a colapsar
com o peso da sua história pessoal, mas um motivo importante que o levou
até aqui foi a mentira que alegava que os trabalhadores
norte-americanos iriam beneficiar da construção do muro – tanto em
termos literais como metafóricos – por todo o país. Contudo, a verdade é
que a abordagem de isolamento de Trump – que não vai morrer com a sua
derrota no próximo mês – teria o efeito oposto.
A norma da
reciprocidade esteve virtualmente omnipresente desde o início da
civilização humana. Não a podemos tomar por garantida. Não podemos
perder de vista o seu valor, quer na nossa vida pessoal quer na nossa
vida profissional, e não podemos permitir que os nossos líderes o façam.
* CEO da Marcus Venture Consulting
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
02/11/16
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