03/11/2016

LUCY P. MARCUS

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A regra de ouro manchada

A campanha de Trump pode estar a colapsar com o peso da sua história pessoal, mas um motivo importante que o levou até aqui foi a mentira que alegava que os trabalhadores norte-americanos iriam beneficiar da construção do muro.

"Não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti". Um conceito simples e lógico – uma forma simples de resolver um dilema moral difícil. Ainda assim, numa altura em que distinguir o certo do errado parece mais difícil que nunca, este postulado clássico – a "Regra de Ouro" – parece estar a deixar de estar na moda.

A norma ética da reciprocidade penetra na história humana, começando com as antigas civilizações egípcias, da Grécia, da Índia e da China. Esta norma está entre os tópicos intelectuais que ligam os ensinamentos das maiores religiões e os filósofos ao longo dos anos, desde o clássico de Roma Séneca até Jean-Jacques Rousseau e John Locke, e até Jean-Paul Sartre e John Rawls.

A Regra de Ouro é o alicerce da nossa compreensão moderna dos direitos humanos universais e é o centro do contrato social moderno. É o ponto inicial das nossas interacções uns com os outros dentro das nossas comunidades e numa base global. É nela que está apoiado o surgimento da actual economia da partilha, de que a Uber e a Airbnb são exemplos. Esta regra também guia as nossas relações pessoais.

Mas a Regra de Ouro está a ser atacada e aqueles que têm mais influência estão a liderar esse processo. Os políticos, mesmo os de um mundo supostamente de democracias esclarecidas, estão a recusar-se a dar refúgio a pessoas que estão desesperadas a fugir de uma guerra brutal; os políticos estão a fazer um esforço pequeno, se é que estão a fazer algum, para abordar as elevadas e crescentes desigualdades económicas e estão todos a ignorar os factores que levaram ao surgimento de movimentos dos direitos civis como o norte-americano Black Lives Matter.

Esta falta de empatia é assustadora e não está limitada aos políticos. Numa altura em que os negócios têm uma grande – talvez excessiva – influência mundial, as empresas, na busca por lucros e poder, frequentemente negligenciam as suas próprias obrigações sociais.

Consideremos o caso da Theranos, uma empresa biotecnológica fundada por Elizabeth Holmes em 2003 que prometeu revolucionar os testes de sangue. Durante vários anos, os dispositivos de testes de sangue "Edison" da empresa foram louvados como inovadores. A Theranos tinha reputáveis financiadores, parcerias com um grande número de farmácias e uma administração que parecia muito impressionante no papel. A sua avaliação disparou para nove mil milhões de dólares.

No ano passado, a verdade foi conhecida: a Theranos era só espelhos e fumo. Não só a maioria dos testes laboratoriais que a empresa oferecia eram feitos em máquinas tradicionais, como muitos dos resultados que produziu eram imprecisos. De facto, mais tarde foi revelado que a Theranos parou de usar todas as máquinas Edison no Verão de 2015 e anulou os resultados obtidos através destes equipamentos emitidos desde 2014, enviando dezenas de milhares de relatórios corrigidos a médicos e pacientes.

Mas a Theranos não podia anular este dano. Era, afinal de contas, da indústria de cuidados de saúde; não vendia meias ou sopa. Os seus erros tiveram consequências no mundo real para muitos pacientes, cujas decisões médicas foram baseadas em dados errados.

É difícil compreender a arrogância e a indiferença grosseira, para com seres humanos, que permite a um CEO e à sua equipa de gestão brincar com a saúde e com as esperanças das pessoas de tal forma. Holmes, que gabava a transparência da sua empresa e que revelou a sua elevada avaliação muito depois de saber que as máquinas Edison estavam a diminuí-la, não quebrou apenas a Regra de Ouro; derreteu-a.

E ela tinha uma grande parte da empresa. Os Panama Papers – os ficheiros divulgados da quarta maior firma de advogados offshore do mundo, a Mossack Fonseca – deu uma visão sobre o quão longe as pessoas estão disponíveis a ir para esconder os seus activos e evitar pagar impostos. Grandes multinacionais como a Apple, a Amazon e a Starbucks estruturam os seus negócios de forma a minimizar o pagamento de impostos de tal forma que agora enfrentam sanções nomeadamente da União Europeia. O New York Times divulgou recentemente que o candidato às eleições presidenciais norte-americanas Donald Trump é também um entusiasta da evasão fiscal.

Trump apelida a evasão fiscal de "inteligência". Muitas pessoas, incluindo eu, chamam-lhe egoísmo, irresponsabilidade e uma quebra no contrato social que lhe permite, e à sua família, acumular riqueza. Qualquer sociedade que faça da sua imprudência e de um comportamento que apenas olha para a sua conveniência uma virtude, não funciona, muito menos é próspera.

Ainda assim, tal comportamento é cada vez mais comum, com consequências sérias. No Reino Unido, os líderes políticos alimentaram receios e fizeram promessas impossíveis – dando origem ao voto pelo "Brexit" da União Europeia. O novo presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, lançou o que é, essencialmente, uma guerra aos direitos humanos, enquanto persegue o caminho do isolamento através de um comportamento agressivo em relação a outros países.

A campanha de Trump pode estar a colapsar com o peso da sua história pessoal, mas um motivo importante que o levou até aqui foi a mentira que alegava que os trabalhadores norte-americanos iriam beneficiar da construção do muro – tanto em termos literais como metafóricos – por todo o país. Contudo, a verdade é que a abordagem de isolamento de Trump – que não vai morrer com a sua derrota no próximo mês – teria o efeito oposto.

A norma da reciprocidade esteve virtualmente omnipresente desde o início da civilização humana. Não a podemos tomar por garantida. Não podemos perder de vista o seu valor, quer na nossa vida pessoal quer na nossa vida profissional, e não podemos permitir que os nossos líderes o façam.

* CEO da Marcus Venture Consulting

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
02/11/16


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