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IN "OBSERVADOR"
14/10/19
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A cultura de ódio
O fanático ativista sente-se moralmente superior porque reivindica um
acesso privilegiado à verdade e essa atitude de superioridade impede a
valorização do dissenso e a obtenção de consensos.
Em 1714 Bernard Mandeville entrou para a história das ideias com a publicação de A Fábula das Abelhas: vícios privados, benefícios públicos.
Considerado um dos livros fundamentais da economia política liberal,
diz sobretudo muito sobre a moralidade do homem moderno. Partindo da
separação moderna entre esfera pública e esfera privada, o argumento de
Mandeville passa por considerar que os vícios privados são essenciais
para a prosperidade económica, gerando benefícios públicos e coletivos –
num argumento mais radical do que o do interesse próprio de Adam Smith.
Ao recuperar a dicotomia entre vícios e virtudes e valorizando os
primeiros, Mandeville permite-nos uma compreensão particular do espírito
moderno. O espírito dos antigos consistia na busca pela vida virtuosa, a
partir da comunidade, e o pensamento cristão manteve durante mais de
mil anos a mesma ideia numa lógica de pecados capitais a evitar. Mas com
a modernidade os vícios adquiriram aceitabilidade, primeiro privada e,
mais tarde, pública.
Hoje assistimos ao culminar de uma expansão
de vícios privados para a esfera pública. É o caso da ira e a tentativa
de sustentar racionalmente discursos de ódio. Embora marque toda a
modernidade, esse discurso floresceu com especial ênfase no mundo
académico durante os anos 60 do século XX. É o nascimento da nova
esquerda e a conceção radical de que o sistema existente é a encarnação
de todo o mal, estando para lá da possibilidade de redenção. Todas as
aflições públicas e privadas são manifestações desse sistema que é
preciso combater ativamente: deve ser totalmente destruído para que seja
possível construir um novo mundo. Nos Estados Unidos esse discurso
ganhou forma numa espécie de ira provavelmente inédita: contra o próprio
país e tudo aquilo que ele representa – capitalismo, imperialismo,
guerra, desigualdades, injustiça. Um sentimento que se foi alargando a
outras academias e que atinge o seu auge com o 11 de setembro. A
professora canadiana Janice Fiamengo
refere essa data como o seu momento de rutura com a cultura que
dominava a academia e que determinara o seu feminismo radical anterior.
Quando viu os colegas manifestarem satisfação com o ataque às torres
gémeas percebeu que havia algo de profundamente errado com aquelas
pessoas e aquela cultura.
Os últimos vinte anos ampliaram o discurso de ódio. Hoje deve
odiar-se tudo e publicamente. O capitalismo, o imperialismo e todos os
conflitos com os quais não concordamos. A cultura do patriarcado e todos
os homens, pois todos são potencialmente violentos. Mas, em especial, o
homem branco. Todos os que não usam as palavras certas. Todos os
filmes e livros que não coloquem a mulher no papel principal e contenham
um elenco preenchido de minorias, velhas e novas, mesmo que à custa de
erros históricos. Todo o humor, a não ser que não tenha piada. Todos os
que não aceitam cegamente a responsabilidade humana nas alterações
climáticas. Todos os que não levam a vida a sério. Todos os que comem
carne. Todos os que fazem piadas inadmissíveis, mesmo que seja por
amizade. As gerações mais velhas, mesmo que se tenham sempre esforçado
para que os filhos tivessem uma vida melhor. E tudo isto agravado pela
maior de todas as invenções da humanidade, as redes sociais, com o seu
destilar de ódio permanente desde as caixas de comentário aos tweets irados, assentes numa lógica de vitimização.
Em
algum momento, passamos a aceitar como normal esta cultura de ódio.
Pior do que isso, passamos a valorizá-la. E é por isso que aplaudimos os
olhos e as palavras iradas da jovem Greta, os comentários daqueles que
querem decidir sobre quem pode ocupar o espaço político, os antis de
toda a espécie, os cordões sanitários, manifestos e cartas abertas, os
que acusam os outros de mil e uma fobias, a absoluta falta de empatia
para quem ousa olhar para o mundo com outros olhos.
É fácil de perceber. Como Amos Oz afirma no seu texto sobre o fanatismo (Contra o Fanatismo,
Edições Asa, 2007), é da natureza do fanático preocupar-se com o outro,
que é sempre a sua obsessão. O fanático acredita que pode salvar o
outro, libertando-o pela conversão, impondo-lhe a sua verdade que é a
única verdade. E é aqui que reside o perigo: o fanático ativista
sente-se moralmente superior porque reivindica um acesso privilegiado à
verdade e essa atitude de superioridade impede a valorização do dissenso
e a obtenção de consensos. Perder o fanatismo é abrir as portas à
ambiguidade, é reconhecer um mundo que não é a preto e branco, é aceitar
a diferença e admitir a legitimidade daquele que pensa de forma
distinta. É saber ouvir. Mas uma cultura de ódio é surda e é, por essa
razão, a maior ameaça a uma sociedade democrática.
* Professora da Universidade da Beira Interior
IN "OBSERVADOR"
14/10/19
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