Os despejos,
a "lei Cristas"
e a demagogia
O drama da expulsão de habitantes dos centros é demasiado grave e complexo para que se admita a sua instrumentalização para combate partidário.
Como habitante do centro de Lisboa, faço
parte de uma rede de vizinhos que lutam pela melhoria das condições de
vida na zona. Esta semana, um deles comunicou que todos os habitantes do
seu prédio, na Rua da Madalena, foram "convidados" a sair até maio,
apesar de alguns terem contratos de arrendamento até 2020 e outros
habitarem o edifício há mais de 40 anos. O imóvel pertencia à mesma
família há cinco gerações e, após a morte da proprietária, foi vendido,
em setembro, por três milhões de euros. A primeira coisa que os novos
donos fizeram foi desligar a luz das escadas e despedir a pessoa que as
limpava, ignorando as cartas dos arrendatários no sentido de reporem a
iluminação e a limpeza.
Este tipo de
selvajaria, que tem sido reportado por vários arrendatários pressionados
a sair e inclui até atitudes criminosas como retirada de corrimãos,
parece ser cada vez mais frequente. Isso mesmo resulta da sessão
organizada na semana passada pelo presidente da Junta de Santa Maria
Maior, Miguel Coelho, com o nome "Rostos dos despejos" e na qual se
ouviram relatos pungentes, de idosos que nasceram nas casas das quais
receberam agora ordem de despejo - na maioria dos casos por o prédio ter
sido comprado e ir para obras -, a famílias mais jovens cujos contratos
não foram renovados ou a quem pedem o dobro ou triplo para renovar.
Mas, face a eles, vejo sobretudo apelar para a revogação da chamada "lei
Cristas".
Parece-me haver, neste
apelo, sobretudo ignorância, mas também muita demagogia motivada pelo
combate partidário. A "lei Cristas" mais não é do que a alteração,
efetuada em 2012, do Novo Regime de Arrendamento Urbano instaurado em
2006, sob os auspícios do então ministro da Administração Interna,
António Costa. Este regime descongelava as rendas correspondentes a
arrendamentos anteriores a 1990, estabelecendo regras para esse
descongelamento e uma moratória de dez anos para a transição para uma
renda atualizada. Essa atualização, porém, não permitia, no caso de
arrendatários de idade superior a 65 anos ou com deficiência e/ou
rendimentos mensais brutos corrigidos inferiores a 3249 euros (sim, não é
engano), a fixação de uma renda livre; esta tinha um teto. Mas,
especificava a lei, o Estado cobriria a diferença entre aquilo que se
considerava que o inquilino podia pagar (uma dada percentagem do seu
rendimento) e o valor fixado. Quando em 2012 o governo Passos alterou a
lei, essa regra não foi alterada, fixando-se o valor da renda
definitiva, ou seja, no fim da moratória, em 1/15 do valor patrimonial
do locado - num apartamento com valor patrimonial de cem mil euros, não
podia ultrapassar 555 euros mensais. Em junho de 2017, a atual maioria
resolveu estender a moratória até 2020 no caso de inquilinos que
invoquem rendimento bruto corrigido inferior ao valor citado e 2023 para
maiores de 65 e deficientes ou, no caso de arrendamento comercial,
microempresas, associações para fins não lucrativos ou repúblicas de
estudantes.
Esta alteração foi justificada com a defesa dos idosos e dos desmunidos, mas, na verdade, limita-se
a poupar ao Estado o valor que este seria obrigado a desembolsar para
ajudar os inquilinos a pagar as rendas que o próprio Estado fixou,
onerando proprietários que há décadas recebem rendas baixíssimas com a
assistência social a que este está constitucionalmente obrigado. Uma
espécie de expropriação sonsa, com o escândalo acrescido de o Estado não
efetuar qualquer redução no IMI e no IRS daqueles a quem obriga a fazer
de santa casa.
Perante isto, que podem
fazer estes proprietários? Enquanto o mercado imobiliário esteve em
crise, ou se conformavam ou vendiam aos inquilinos a preços de saldo,
para não terem mais prejuízo. Mas agora que, sobretudo nos centros de
Lisboa e Porto, uma conjugação de fatores nos quais avultam a explosão
turística e o redirecionamento do mercado internacional para o
investimento em imobiliário está a inflacionar desmedidamente o valor
das casas, os proprietários depauperados são confrontados com ofertas
milionárias - e vendem, já que não vislumbram o dia em que possam
receber um valor razoável pelo que é seu. E quem compra por atacado
prédios que décadas de rendimento muito baixo deixaram em mau estado
fá-lo porque tem poder económico para, de acordo com a lei (que esta
maioria, curiosamente, não alterou nesse aspeto), despejar os inquilinos
para "remodelação profunda" pagando-lhes indemnizações fixadas em dois
anos de renda - portanto muito baratas - ou propondo-lhes realojamento
por três anos.
O congelamento das
rendas foi um erro histórico com múltiplos efeitos perversos; considerar
que qualquer solução à calamidade que se vive nos centros de Lisboa e
Porto passa por mais congelamento é de bradar aos céus, tanto mais que
muitos dos despejos são resultantes da não renovação de contratos
posteriores a 1990, quando o mercado de arrendamento foi liberalizado. É
preciso pensar uma forma de intervir que limite a possibilidade de
aumento histérico das rendas sem desmotivar o interesse dos
proprietários pelo arrendamento de longa duração. Condená-los à
benemerência e portanto à ruína, que é o que congelamento das rendas
implica, não só é completamente iníquo como tem tido o belo resultado a
que estamos a assistir.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
09/04/18
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