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IN "PÚBLICO"
30/03/16
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Comunismo e rock:
a outra “guerra fria”
Para muitos milhares de cubanos, a longa “guerra fria” entre Havana e Washington terminou muito mais com o som poderoso e mobilizador dos Stones do que com Obama a cumprimentar cordialmente Raúl Castro.
O concerto dos Rolling Stones em Havana, com centenas de milhares de
pessoas a assistir, acabou por ter um carácter tão histórico como o da
visita do Presidente Barack Obama, após décadas de relações cortadas dos
Estados Unidos com a Cuba de Fidel, “Che” Guevara e Raul Castro. Foi a
primeira vez que os cubanos, tanto os mais velhos como os jovens,
puderam assistir a um concerto com esta dimensão e fulgor, num país que
sempre encarou de forma crítica, restritiva e censória a música dos
Stones, dos Beatles e de muitos outros, mesmo tendo e conta que músicos
como Carlos Santana e alguns mais chegaram a identificar-se com a figura
do argentino “Che” Guevara, assassinado em Higuera, na Bolívia, em 1967
pela tropa de René Barrientos e pela CIA.
Ernesto “Che” Guevara,
médico de profissão e guerrilheiro por opção, não gostava de rock e,
quando, integrado como comandante das forças rebeldes comandadas por
Fidel Castro, conquistou Santa Clara, já muito perto do dia 1 de Janeiro
de 1959, data da entrada triunfal dos guerrilheiros da Sierra Maestra
em Havana, após a fuga do corrupto Fulgencio Batista (que acabou por se
exilar em Portugal), proibiu o jogo e também os bailes juvenis pela sua
“frivolidade” em tempo de profundas mudanças sociais e políticas.
Em
1964/65, o rock foi proibido em Cuba, e os Beatles, na terra da
“salsa”, chegaram a ser considerados “agentes do imperialismo”, crítica
que pelo menos John Lennon, combativo como sempre, não teria deixado sem
a resposta adequada. Entretanto, Beatles, Stones, Bob Dylan e muitos
outros construíram obra e carreira, sem quererem saber dessas barreiras
ideológicas que em alguns países os afastavam compulsivamente da
juventude.
Em Cuba, os tempos passaram e um neto de “Che” Guevara,
de seu nome Caisek Sanchez Guevara, tornado guitarrista, foi
politicamente perseguido, acabando por abandonar o país. Deste modo, o
comunismo e o rock viviam uma relação tensa e de grande crispação e
desconfiança, o que levou a que na URSS e nos países da Europa do Leste
que dependiam política e militarmente de Moscovo o rock, mesmo sem ser
proibido, estivesse sujeito à intervenção da censura, fazendo proliferar
o mercado negro em seu redor. Quem queria ouvir ouvia, mesmo que
tivesse de pagar um preço avultado por esse prazer de excepção. Entre o
cubanos que agora em Havana ajustaram contas com décadas de privação,
viam-se pessoas comovidas que falavam de Satisfaction como se citassem uma velha oração proibida.
Na
China de Mao Tsetung, a Revolução Cultural baniu a música rock, que
claramente associou ao imperialismo e às suas mensagens. Na Indonésia,
que matou e viu matar muitas dezenas de milhares de comunistas, o rock
esteve proibido durante mais de três décadas, no Paquistão no final da
década de 70 do século passado e no Afeganistão entre 1994 e 2001.
Ao
ser assassinado com 39 anos em 1967, no meio da floresta boliviana, Che
Guevara não gostava de rock e do que ele representava. Tinha idade e
experiência bastantes para gostar, mas foi som e estilo a que nunca se
afeiçoou, acabando por mudar tantos gostos e mentalidades como algum do
melhor rock seu contemporâneo.
Nos Estados Unidos, na década de
80, a direita radical que teria, com Reagan na Casa Branca, o seu tempo
de glória ergueu-se contra o rock e os perigos da sua mensagem, lançando
o reaccionário selo “Parental Advisory Explicit Content”, que o mercado
e a vida democrática acabaram por esvaziar de sentido e fazer cair no
esquecimento.
Agora, depois de muito caminho andado e sem terem
necessidade material ou artística de conquistar novos públicos e
mercados, Mick Jagger e Keith Richards, ambos com 72 anos, deslumbraram
Havana com a sonoridade inconfundível de uma banda que, com mais de 50
anos de vida, tem tanta pujança simbólica, mediática e mítica como o
próprio Ernesto “Che” Guevara, cujo meio século da morte será celebrado
no próximo ano.
Para muitos milhares de cubanos, a longa “guerra
fria” entre Havana e Washington terminou muito mais com o som poderoso e
mobilizador dos Stones do que com Obama a cumprimentar
cordialmente
Raúl Castro. Resta agora saber o que vai ficar de tudo isto e até que
ponto Satisfaction poderá ajudar o poder político em Washington
a fazer cessar décadas de embargo que, bem vistas as coisas, tanto
contribuíram para manter no poder os irmãos Castro e o seu modelo de
sociedade, agora já não vinculado a Moscovo, apesar das boas relações
comerciais que se mantiveram após a queda do comunismo, depois do
derrube do Muro de Berlim em 1989.
Neste mundo globalizado, o rock
e o comunismo têm o seu tempo e a sua história, as suas mágoas e a sua
memória. Cabe às gerações futuras determinar até que ponto o mundo
continuará a rever-se nos seus vários legados e cicatrizes.
Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores
IN "PÚBLICO"
30/03/16
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