Antes do dilúvio
ó o baixo grau de exigência de uma sociedade que não acordou para este problema permite que o Bloco de Esquerda venha atacar e taxar retroativamente a energia renovável ou que o PCP defenda a ocupação das ilhas barreiras, ambos casos das últimas semanas que ilustram um pensamento profundamente reacionário e anacrónico
O acordo de Paris entrou em vigor na última sexta-feira e esta semana
começou mais uma reunião anual (COP) da Convenção das Nações Unidas
sobre alterações climáticas.
É em Marraquexe, afinal, que tudo
começa porque não foi de avanços e concretizações que viveu este ano de
espera depois de Paris. Se quisermos o copo meio cheio, foi mais rápida
do que se esperava a ratificação dos grandes poluidores. Mas se medirmos
os compromissos assumidos, o copo está bastante vazio.
A
comunidade científica considera, de forma consensual, que qualquer
aumento da temperatura média global do planeta superior a 2 graus
centígrados terá consequências dramáticas e tendencialmente
irreversíveis. Ora, os compromissos de redução de emissões de gases com
efeito de estufa, assumidos por mais de 150 Estados, são um resultado
notável da COP21 de Paris. Mas não evitam desde já um aumento da
temperatura global do planeta de 2,7 graus centígrados…
As
grandes cimeiras internacionais partilham os vícios e as virtudes de
todos os processos de decisão política.
À escala nacional, a política é
a arte do possível. Já quando tentamos fazer política à escala
planetária, usando o consenso como método de decisão, a dificuldade de
tornar possível o impossível, de fazer convergir os interesses de quase
200 Estados soberanos em torno de um denominador comum aumenta essa
dificuldade e precisa mesmo do nosso estímulo, da nossa vigilância, da
nossa exigência.
O método negocial escolhido, assente na
publicitação dos compromissos, permite desencadear uma competição entre
os Estados, entre todos os Estados e não apenas entre os Estados
desenvolvidos, como acontecia com o Protocolo de Quioto assinado em
1997.
A grande mudança em Paris não foi a boa vontade da
Administração Obama, limitada pela maioria do congresso republicano e
por esta race to the bottom que se lhe seguiu. Foi mesmo a situação
gravíssima em que se encontra a China, onde os efeitos da poluição se
tornaram tão impactantes que a pressão da população sobre o poder
político – sim, na China… – obrigou a uma mudança radical.
Já não
é, felizmente, a União Europeia sozinha a puxar o comboio. Os três
blocos de grandes poluidores parecem ter alguma vontade de agir em
conjunto. A União Europeia continua a ter as tecnologias e o
conhecimento necessários ao combate às alterações climáticas, em
particular em matéria de tratamento de resíduos, de águas residuais, de
poluição atmosférica, processos industriais, energias renováveis e
transportes. A China é a maior economia mundial e tem de melhorar a sua
eficácia, reduzindo as emissões e ajudando os países em vias de
desenvolvimento a diminuí-las.
Mas o resultado global só se atinge
com a pressão de uma opinião pública exigente. E, sobretudo, com milhões
de pequenos e grandes gestos, com a mudança de paradigma.
Em
Portugal, estamos em modo de descanso. Só o baixo grau de exigência de
uma sociedade que não acordou para este problema permite que o Bloco de
Esquerda venha atacar e taxar retroativamente a energia renovável ou que
o PCP defenda a ocupação das ilhas barreiras, ambos casos das últimas
semanas que ilustram um pensamento profundamente reacionário e
anacrónico.
Mas, se quisermos um exemplo do nosso maior
desleixo, talvez nada se compare ao caótico estado em que se encontram
os transportes públicos de Lisboa. É no setor dos transportes que se
concentra a maioria das nossas emissões difusas. Não é possível
abandonar o uso do carro quando o transporte público funciona sem
qualquer articulação, coerência e funcionalidade. Com tarifas cada vez
mais caras, cada vez mais confusas e sem soluções funcionais, nunca se
fará a mudança que Lisboa precisa.
Diminuir as emissões de gases
com efeitos de estufa é diminuir a intensidade energética dos processos
industriais e da produtividade em geral, o que torna a economia mais
eficiente e logo mais competitiva. Poupar energia em geral e poupar nos
combustíveis fósseis permite equilibrar a balança comercial, subir na
escala tecnológica e disponibilizar recursos públicos e privados para
satisfazer as necessidades coletivas.
Por cá, a crise fez parar a
nossa trajetória de crescimento nas emissões. O resultado é uma
desatenção quotidiana a tudo o que podíamos melhorar. Deve ser culpa do
Trump.
IN "VISÃO"
18/11/16
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