HOJE NO
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RTP
História de uma empresa
que foi privada até 1975
Fez 57 anos este mês a constituição da RTP, empresa obrigada a lutar por dotar o país de TV e que acabou nacionalizada por não distribuir dinheiro ao Estado. Agora, volvidos 38 anos, entra na lista de vendas por dar prejuízo
“Continua a atrair uma multidão desejosa de ver com os seus próprios
olhos uma das maiores maravilhas do nosso tempo. Programas dos mais
variados assuntos, culturais, desportivos e folclóricos, nos ecrãs
mágicos dos aparelhos colocados por toda a Feira.” Menos de um ano
depois da criação da R.T.P., a 15 de Dezembro de 1955, a “sociedade
anónima com intervenção do Estado” tinha 15 televisões espalhadas pela
Feira Popular para as primeiras emissões experimentais de televisão em
Portugal.
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A entrada custava um escudo e o desafio era “que ninguém deixe de ver
esta novidade no maior recinto de diversões da capital”. Em troca a
promessa era uma “noite de grande animação” com a “Rancha Flores da
Nossa Terra, de Mira”. Era assim que a recém-formada R.T.P. enfrentava a
sua maior dificuldade: o desconhecimento do que era uma TV.
Com um terço do capital em mãos do Estado, outro terço nas rádios
privadas “e o outro com o público, por meio de subscrição de capital
aberto nos bancos”, a 4 de Setembro de 1956 a R. T. P. avançou “pela
primeira vez em Portugal” com “experiências oficiais de televisão”.
“Visite os estúdios e veja os programas nas dezenas de aparelhos
montados no recinto.
Amanhã sorteio de um aparelho televisivo Philips.”
Foi graças à Philips Portuguesa, ao apoio de “O Século” e da Radio
Corporation of America, “que forneceu, gentilmente, um equipamento
completo, incluindo uma torre de antena, de 50 metros, instalada na
Feira Popular”, que parte da cidade de Lisboa pôde naquela noite
assistir à transmissão experimental da Radiotelevisão.
Mas não em casa:
Praça de Londres (2), Rua Nova da Trindade, Portugália da Av. Almirante
Reis, Cinema Monumental, Castanheira de Moura, Armazéns do Chiado, Av.
da Igreja, Praça do Areeiro, Rossio, Av. da Liberdade, Largo do Chiado,
Rua Barata Salgueiro, Restauradores, Praça Duque de Saldanha e Rua Silva
Carvalho eram os locais onde o público se poderia juntar para ver com
os próprios olhos o fenómeno que em breve viria a tomar de assalto os
seus tempos livres. “Campeões do Sport Lisboa e Benfica em demonstração
de pingue-pongue” era o programa agendado para as 22h dessa noite. A
expectativa para a primeira emissão era tal que nesse dia o trânsito foi
caótico em Lisboa, tal o número de pessoas que se juntaram a ver os
receptores de rua.
No final de 1956 a empresa regista um primeiro lucro, ainda que “graças
à providência do governo em conceder a esta sociedade uma percentagem
das receitas da taxa de radiodifusão sonora”. As taxas, sempre as taxas.
O resultado líquido cifrou-se em 27 mil contos, isto apesar das
“numerosas edições de ensaio” realizadas para o treino dos primeiros
trabalhadores da casa e também da “larga propaganda” feita para promover
a penetração da televisão junto do público. Como? Distribuindo
televisões: “No que respeita ao comércio de receptores, a influência do
trabalho da R.T.P. já se fez grandemente sentir nos preços relativamente
moderados, porque, de maneira geral, estão sendo oferecidos ao
público”, explica a administração da empresa no relatório e contas de
1956.
Foi só a 18 de Fevereiro de 1957 que a R.T.P. passou a oferecer uma
programação diária, primeiro apenas numa área à volta de Monsanto, e a
partir de Novembro em Lisboa, Coimbra e Porto. Apesar desta conquista,
“infelizmente somos forçados a anunciar resultados bem menos
satisfatórios no que respeita à instalação dos estúdios de Lisboa”. Já
com localização escolhida há dois anos, “problemas urbanísticos e
outros” foram impedindo a construção deste estúdio, levando a televisão a
procurar soluções de recurso que obrigaram a “avultadas despesas”.
Ainda assim, o caminho estava a ser bem trilhado: “Poucos são já os
jornais portugueses que não se referem regular e frequentemente à
Televisão e seus programas”, “desde o início das emissões os programas
têm despertado as atenções gerais. Vivamente criticados por uns,
aplaudidos benévola e compreensivelmente por outros, ninguém, pode
dizer--se, lhes tem ficado indiferente.” A TV em Portugal em 1957
começava a descolar.
Neste ano, que terminou com perdas de 13 mil contos, sobretudo devido
“a um autêntico investimento no sentido de fomentar o número de
receptores em serviço, cujo rápido incremento será a única base para a
viabilidade económica da TV”, também a produção nacional televisiva
começou a dar os primeiros passos, com a empresa a investir 5 mil contos
em produção de programas que trouxeram um retorno de apenas 160 contos.
Mas também este mundo era novo. Em 1959, por exemplo, a R.T.P. levou a
cabo o primeiro concurso aberto a quem quisesse enviar originais para
programas de televisão: “O resultado não foi muito animador, mas a
R.T.P. continuará no objectivo de interessar os autores portugueses a
escrever para a TV.”
A excitação dos primeiros tempos começou a esmorecer ainda em 1958.
“Foi o termo da fase dos pioneiros” e o “ano mais árduo” até ao momento,
“não só porque, vencidas as primeiras dificuldades pelo entusiasmo e
impulso criado, necessário se tornava continuar a improvisar sob a
pressão dos acontecimentos”. Coube aos trabalhadores compensar as falhas
administrativas e a inexistência de condições mínimas: “Problemas [de
estúdios] não estão cabalmente resolvidos, porquanto se continua a
dispor de estúdios por de tal forma inadequados que […] chega a parecer
prodigioso como, a partir dessas instalações, tem sido possível fazer
emissões com a duração e a regularidade das que têm sido oferecidas aos
espectadores”, reflectia a administração da empresa.
Por esta altura, o tempo de programação da RTP dividia-se em “Teatro,
música séria e bailado” (9,2%), “Culturais, entrevistas e palestras”
(16,5%) ou “Variedades, teatro e música ligeiros, concursos e folclore”
(21,6%), sendo reservados 10,4% da emissão para “Desportivos” e outros
18,4% para “Notícias e actualidades”. E os espectadores portugueses
estavam a superar as expectativas: “O número de receptores previsto
inicialmente para o fim de oito anos fora, no começo desta gerência,
admitido como devendo ser atingido ao fim de quatro anos; afinal foi
alcançado em dois anos! Quer dizer, um ritmo quatro vezes mais rápido
que o esperado – 32 mil aparelhos importados até Dezembro de 1958, ano
em que o ritmo foi de cerca de 2 mil por mês”, celebra a administração
nas contas daquele ano.
Os ventos estavam de tal forma de feição que pouco demorou até que “o
estabelecimento da TV nas províncias de Angola e Moçambique” começasse
“a ser estudado com carinho”, até porque os locais mostravam um
“interesse exuberante” pela televisão, um bocado como acontece hoje
quando se fala na privatização da televisão ainda pública.
O optimismo
não se ficava pela extensão da R.T.P. às províncias africanas: “Deve
dizer--se que, a manter-se o ritmo actual, os resultados de exploração
devem tornar--se positivos já no ano de 1960, dois anos antes do que se
previra.” Então como agora, a receita passava por “rígida disciplina
administrativa e espírito de estrita economia” para “oferecer benefícios
aos seus accionistas, como é mister”. E os benefícios para os
trabalhadores? “Indispensáveis ajustamentos de vencimentos, para os
elevar a níveis que se praticam noutras empresas e remunerem justamente
os mais competentes, serão oportunamente considerados”, ponderavam os
administradores.
No final da década de 50, a R.T.P. já recebia em taxas mais de 7400
contos anuais, uma explosão face aos 1780 contos que recebia até 1958,
sinal de que o total de televisões registadas estava em crescimento,
trajectória que se intensificou nos anos seguintes: se em 1959 havia 31
mil, em 1960 já eram quase 50 mil – e falamos apenas de aparelhos
legalmente registados, já que muitos fugiam à obrigatoriedade de
registar e pagar taxas. Em termos geográficos, aponta a empresa nas
contas de 1960, 6,2% das famílias em Lisboa já tinham receptores de TV,
5% em Braga, 4,2% em Évora e 3,8% no Porto.
A televisão estava a crescer
e neste ano estava em curso a segunda fase de expansão da cobertura,
que levaria o sinal da R.T.P. a 82,5% da população.
O crescimento também se fazia sentir nas receitas publicitárias, com as
empresas a reconhecerem cada vez mais a força da televisão. No início
dos anos 60, a publicidade duplicou, o que obrigou a RTP a controlar a
mesma. Para não entupir os telespectadores de publicidade, a empresa
aumentou em 1961 os preços 30%: “Para evitar a saturação publicitária
mantendo a receita.”
Não eram só as empresas que estavam a prestar atenção à força da TV. Em
1959 já a RTP tinha ido ao Ultramar cumprir o seu papel de meio de
grande difusão em plena ditadura: acompanhar uma viagem de cinco semanas
do “Sr. Ministro do Ultramar a Moçambique e Angola”, durante a qual
“foram inauguradas importantes obras de fomento de que o país pode tomar
directo e rápido conhecimento graças à TV”.
Com “regras de produção e
selecção extremamente rigorosas”, a informação da R.T.P. viveu nestes
anos um período em que serviu de “aparelho – técnico e discursivo – e um
instrumento, determinante para a legitimação e a longevidade da
ditadura”, conforme refere Francisco Rui Cádima no trabalho intitulado
“A Televisão e a Ditadura”, onde é citada por exemplo a “ordem de
serviço n.o 1” da Direcção dos Serviços de Censura, que, a 14 de Janeiro
de 1960, determina que “são sempre de submeter à decisão da Direcção,
devidamente datados, os seguintes casos: Críticas ou comentário à acção
do chefe de Estado, Presidente do Conselho e membros do Governo; Artigos
ou noticiário visando a forma de estrutura política do Estado ou do
Regime; Críticas à política económica, financeira e externa do Governo;
Movimento de embarques, ataques e críticas à acção das Forças Armadas e
de Segurança ou das Polícias”.
O rápido crescimento que a R.T.P. sentiu ao longo da década de 60 fez
com que chegasse a 1965 com 2359 horas de programação e com perto de 940
trabalhadores, contra os 600 de 1959. A oficialização de televisões no
país, graças a operações da GNR para aplicar multas aos donos de
aparelhos que não pagavam taxa – tendo em 1964 sido “multados 2776
espectadores por não possuírem licença e enviados para tribunal para
execução 5555 autos” –, ajudou a RTP a inverter os resultados. Se até
1962 tinha acumulado 76 mil contos de perdas, a partir de 1963 a empresa
estava nos lucros. A barreira dos mil trabalhadores foi passada em
1968, ano em que a RTP lucrou 28 mil contos, graças a receitas de 165
mil contos, mais de metade das quais vindas das licenças de TV, que por
esta altura eram já mais de 300 mil, quando em 1964 eram 100 mil – nada
como as fiscalizações da GNR.
No final desta década, e já depois do lançamento do “2.o Programa”, os
telejornais da TV portuguesa viveram um momento marcante, quando foi
possível que “as imagens de acontecimentos europeus” fossem “inseridas
no telejornal no próprio dia dos acontecimentos”. Foi também em 1969 que
uma renovação de programas levou ao lançamento do Zip-Zip, de Carlos
Cruz, Fialho Gouveia e Raul Solnado, gravado aos sábados e transmitido
apenas às segundas-feiras – para que a Polícia Internacional e de Defesa
do Estado, vulgo PIDE, tivesse tempo de cumprir o seu papel.
Depois da RTP2, o lançamento da televisão nas ilhas começava por esta
altura a ser estudado na R.T.P., acabando o canal madeirense por ser
oficialmente lançado em Agosto de 1972 e a R.T.P. Açores três anos
depois. Mas entre o nascimento de um e outro muita coisa mudou.
Em 1972 havia já mais de meio milhão de televisões registadas no país, e
a empresa contava com 1178 colaboradores que asseguravam perto de 4 mil
horas de programação anual, das quais apenas 4,07% eram preenchidas com
publicidade. O lucro nesse ano foi de 13,4 mil contos e no ano seguinte
ficou-se pelos 12,7 mil contos, com os trabalhadores a atingirem os
1216.
Mas este ano fica marcado sobretudo por uma outra estreia. César
Moreira Baptista, secretário de Estado da Informação e Turismo, passa a
ter direito a um comentário na abertura do Telejornal, com uma
periodicidade quinzenal ou mensal, prática de propaganda até então
inédita na relação da R.T.P. com a ditadura. “Nunca a propaganda,
através do texto de opinião oficial, havia ido tão longe”, sintetiza
Francisco Rui Cádima, no trabalho já citado. “Creio que em nenhuma outra
época os governantes portugueses tiveram tanto a preocupação de
informar, justificar e fornecer dados e razões que permitam um exacto
juízo dos fundamentos das orientações seguidas e das decisões tomadas. E
ninguém melhor e com mais autoridade e esclarecido juízo o tem feito
que o próprio Presidente Marcello Caetano, que tantas vezes aqui vem
para conversar com o povo”, disse Moreira Baptista na sua palestra de
estreia no Telejornal de 25 de Janeiro de 1973.
Já a 26 de Outubro,
antevéspera de eleições para a Assembleia Nacional, a R.T.P. avança com
uma “homenagem” ao “pensamento viril” de Caetano e cinco anos de
governo. A intensificação da propaganda pró-regime pela televisão,
contudo, de pouco serviu para conter o crescendo de revolta que já se ia
fazendo sentir por esta altura.
Os tempos eram de ocaso do regime, com a revolução do ano seguinte a
levar à alteração do estatuto da R.T.P., que em 1975 acaba nacionalizada
pelo Decreto-Lei 674-D/75, de 2 de Dezembro, precisamente com a
justificação de não ter cumprido qualquer das obrigações da concessão:
“Em vez de ‘programas de nível elevado’ deu ao povo português, ao longo
de 18 anos, uma programação de baixo nível, tornando-se um instrumento
embrutecedor e alienante ao serviço do conservantismo retrógrado e
fascista”, lê-se no decreto, que culpa também a falta de distribuição de
lucros para o accionista Estado como razão para a nacionalização:
“[...] as empresas de radiodifusão accionistas da RTP têm obtido, além
do seu dividendo, e sem que para isso tenham investido mais um centavo,
um lucro líquido que em 1973 quase atingiu 100% do capital investido, e
que no total equivale a mais de seis vezes a totalidade do investimento.
Simultaneamente, o Estado [...] entregou até 1968 as aludidas
percentagens das taxas de radiodifusão e não teve qualquer participação
nos lucros da publicidade.”
Pelas contas apresentadas no referido decreto-lei, os privados no
capital da RTP receberam 131,3 mil contos dos lucros da empresa entre
1959 e 1973, ao passo que o Estado pouco ou nada encaixou: “Impõe-se, e
já tarda, o saneamento de toda esta escandalosa situação e a simultânea
instituição de uma nova televisão que esteja ao serviço, não de
interesses comerciais inconfessáveis, mas dos superiores interesses do
povo português e só destes”, sentenciava o decreto assinado por Pinheiro
de Azevedo.
A R.T.P. acabou assim nacionalizada por não distribuir
lucros ao Estado e para servir os portugueses, e agora será privatizada
com a justificação de impor prejuízos ao Estado podendo acabar longe de
servir “só” o interesse de portugueses.
A evolução das contas da R.T.P. nos anos seguintes à nacionalização,
porém, mostram que esta também serviu para pôr a empresa mais ao serviço
dos trabalhadores do que até então: 1216 trabalhadores em 1973 custavam
140 mil contos à R.T.P., mas em 1979 eram já despendidos 711 mil contos
com 1994 colaboradores, um aumento de 408% em remunerações para mais
64% de pessoal.
* Um resumo essencial e esclarecedor.
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