Internet e democracia:
mudança fundacional
Tal como o tecido económico está em processo de transformação e adaptação à economia digital, também a democracia liberal precisa de ser refundada para sustentar com sucesso as instituições do Estado democrático na nova era da Internet.
“Agora, através do Facebook e Twitter (…) há permissão social para
[dar a volta aos parâmetros do discurso aceitável]. Há a permissão
social para esse tipo de discurso. Mais, através desses mesmos meios
sociais pode encontrar-se pessoas que concordem consigo, que validam
esses pensamentos e opiniões. Isto cria toda uma nova estrutura de
permissão, um sentido de afirmação social para o que antes se
considerava ser impensável. É uma mudança fundacional.”
Assim falou Barack Obama sobre as redes sociais na Internet numa
série de conversas com David Remnick, da revista The New Yorker. O
presidente dos EUA reafirma a sua capacidade de distanciamento e de
análise fria dos acontecimentos e das pessoas – incluindo a apreciação
que faz dele próprio. É um texto extraordinariamente interessante pelo
que revela da capacidade de análise e de pensamento estruturado virado
para o futuro. O momento em que as conversas decorreram é também
extraordinário. Remnick acompanhou Obama em viagens de avião, autocarro e
comícios durante os últimos dias da campanha eleitoral, quando ainda se
admitia a vitória de Hillary Clinton, e nos primeiros dias depois da
eleição de Donald Trump, designadamente na Sala Oval.
A primeira campanha de Obama em 2008 foi também a primeira a utilizar
com eficácia o poder da Internet para mobilizar o eleitorado e captar
donativos. Mas Obama diz que foi igualmente a última que decorreu num
contexto informacional, em que os mass media tradicionais – imprensa,
rádio e televisão – ainda dominavam. Destes, apenas a televisão ainda se
pode considerar um meio de massas, embora em perda constante de
audiência. É o único que ainda consegue congregar milhões de pessoas ao
mesmo tempo, mas esse poder está cada vez mais concentrado num ou dois
tipos de eventos e programas, novelas e desporto – e mesmo este em perda
de audiência.
Poderá a Internet ser considerada um mass medium? Alguns dos
seus conteúdos certamente alcançam milhões de pessoas, embora de modo
disperso e não todos ao mesmo tempo. Mas a principal questão não reside
apenas no alcance da Internet, que é ilimitado, mas sim nos conteúdos
projetados sem a intervenção do mediador profissional: o jornalista. A
Internet fomenta o desenvolvimento de tribos e de seitas, para além de
facilitar a atividade maliciosa de ‘hackers’ e de propaladores de
invenções. No Brasil verificou-se que notícias falsas sobre o processo
contra Lula da Silva tinham tantos leitores como as notícias
verdadeiras. Na Macedónia, uma empresa especializou-se em fabricar e
divulgar mentiras pró-Trump e anti-Clinton.
Quando surgiu, a Internet foi saudada como instrumento de liberdade
que anunciava o fim das fronteiras entre Estados. A Internet seria um
supra-Estado. Hoje, quando perto de um quarto da humanidade utiliza o
Facebook – instrumento de eleição para alimentar crises psicóticas,
propalar conspirações e alimentar incontáveis tribos –, a Internet não
se tornou um Estado com os instrumentos de governação próprios dos
Estados. É antes um vasto território selvagem onde pontificam alguns
potentados transnacionais incontroláveis e incapazes de conter quem os
utiliza, como o Facebook, Google e Twitter, utilizados por hordas
anarquistas, niilistas e de uma variedade de extremistas, islâmicos e
outros. Esta semana, um estudo académico britânico revelou que, no mês
seguinte ao assassinato de Jo Cox, deputada britânica apoiante do Remain,
foram produzidos 53 mil tweets por, pelo menos, 25 mil indivíduos a
celebrar o “heroico” assassino e a incitar mais ações “patrióticas” como
aquela.
Na Internet dominam os que têm os meios para dominar e utilizar a
tecnologia, e onde os media profissionais têm a custo vindo a conquistar
terreno. A procura da verdade – a análise, a contextualização, o
contraditório, a confirmação das fontes e dos factos – perdeu relevância
sendo. Agora (de novo) o mensageiro é ele mesmo a própria mensagem. A
tecnologia passou a ser vista com suspeição por muitos dos que defendem a
liberdade. Um conhecido investidor de Nova Iorque disse a propósito da
eleição americana que a Internet colocou a democracia em causa. O
Facebook defende-se e diz que está a montar um sistema de verificação da
idoneidade das informações para eliminar as “notícias” falsas. É uma
atividade complexa que requer a intervenção de inteligência artificial e
humana, mas, provavelmente, impossível de ser eficaz. É preciso
verificar as fontes, uma a uma. E a partir desse momento Facebook
tornar-se-á num publisher, atividade que Zuckerberg afirma não pretender
mas que inevitavelmente irá ter que exercer.
A utilização do Twitter por Trump, amplificada e validada pelos media
profissionais – entretidos pela novidade, entretendo a populaça e
maximizando audiências, em particular a TV por cabo – revelou todo o
poder da comunicação eletrónica, diretamente para os eleitores sem
intermediação jornalística. Segundo Neil Munshi, do Financial Times,
Trump virou do avesso o mundo político, a indústria das sondagens, os
media, os mercados de previsões, os ‘establishments’ republicano e
democrata e a totalidade da ordem geopolítica ao conseguir a mais
improvável vitória na história dos EUA. Tal como conseguiu arrebatar a
presidência a Clinton apesar desta ter tido mais de dois milhões de
votos.
Importa perguntar qual é o impacto da pulverização informacional, não
mediada, imbuída de coisas verdadeiras e outras falsas, no sentido de
voto dos eleitores. Na prática, deixámos de saber o que pensam. Muitos
eleitores americanos terão tido vergonha de dizer ao inquiridor que
iriam votar Trump, ou seja, mentiram sobre qual seria o sentido do seu
voto. Quando mais de 40% do eleitorado (branco) se comporta como se de
uma minoria se tratasse e vota em massa em Trump, e isso não é detetado
pelos ‘pollsters’ e pelos media – que viviam numa bolha artificial e
autofágica –, parece-me certo que, como dizem alguns republicanos, o
modo de funcionar dos ‘pollsters’ caducou.
A eleição americana, como antes o Brexit e agora as primárias
republicanas em França, lançaram o descrédito sobre as empresas de
estudos de opinião. O que irá passar-se nas eleições em França e na
Alemanha e no referendo em Itália? A indústria de estudos de opinião,
elemento essencial das democracias modernas, precisa de empreender a
refundação que os media iniciaram. De facto, tal como o tecido económico
está em processo de transformação e adaptação à economia digital,
também a democracia liberal precisa de ser refundada para sustentar com
sucesso as instituições do Estado democrático na nova era da Internet.
* Professor Universitário
IN "OJE-JORNAL ECONÓMICO"
29/11716
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