Investigação básica:
os alicerces do
desenvolvimento científico
A FLAD anuncia quarta-feira os vencedores do Prémio Life Science 2020 em investigação básica e investigação aplicada. Porque uma não vive sem a outra
Uma ideia recorrente,
defendida por especialistas em economia e finanças durante a crise do
sistema financeiro, é a de que as poupanças devem ser repartidas por
vários tipos de aplicações, numa lógica de não colocar os ovos todos no
mesmo cesto.
A razão para esta estratégia é até bastante simples: se as cotações
da bolsa descerem drasticamente (ou um dos cestos cair, na analogia dos
ovos), sobram os depósitos a prazo. É curioso, no entanto, que esta
estratégia - de bom senso, afinal - não esteja a ser seguida para o
financiamento da ciência, em particular na área das ciências da vida.
Assustados com o clima de austeridade, os principais financiadores
têm vindo a dar cada vez mais importância à aplicabilidade da ciência, à
dita investigação de translação: uma investigação direccionada para o
tratamento de uma doença em particular. Identificado um problema
específico, como a necessidade de prevenir o ébola, procura-se uma
solução - no caso, a vacina.
Do outro lado temos a investigação básica ou fundamental, que tem
como propósito descortinar pura e simplesmente os mistérios da
existência, criar conhecimento, sem um propósito pré-definido. O
problema é que esta exige tempo sem dar quaisquer garantias. É
impossível prever o resultado final quando se inicia o estudo de um
mecanismo celular totalmente desconhecido.
Andre Geim, laureado com o Nobel da Física em 2010 pela descoberta
quase acidental do grafeno - um novo material com extraordinárias
propriedades - e professor da Universidade de Manchester, defende que "a
nossa sociedade está à beira de uma crise de novo conhecimento. A
cadeia da descoberta básica ao consumidor final é longa, obscura e lenta
mas, se destruirmos a base, o sistema colapsa".
A discussão faz-se por todo o mundo. Que face da moeda se deve
privilegiar? A questão tem sido vivida com mais intensidade em países
como os Estados Unidos da América ou o Reino Unido, onde há grande
tradição, sobretudo ao nível das empresas ou das fundações, no apoio à
investigação fundamental.
Com os privados fora da jogada, o peso da investigação básica recai
todo nas universidades e governos, e também estes têm vindo a dedicar a
maior parte dos fundos à investigação aplicada. O principal programa
comunitário de financiamento da investigação e inovação, o Horizonte
2020, é um exemplo disso mesmo, ficando o apoio à investigação
fundamental quase exclusivamente a cargo dos projectos ERC (European
Research Council), com um orçamento muito, muito mais reduzido.
Ao longo da história da ciência tem havido inúmeros exemplos de como
uma investigação sem um propósito concreto acabou por ser a base da
resolução de graves problemas da humanidade. Podemos pensar em Newton,
que quando descreveu as suas leis do movimento, no século xvii, não
teria a mais ínfima expectativa de que, três séculos mais tarde, estas
estariam na base do lançamento de satélites ou da ida à Lua.
Na área das ciências da vida, os exemplos também são mais que muitos.
O mais famoso do género talvez seja a descoberta da penicilina por
Alexander Flemming, que terá resultado de uma distracção, de um acaso,
mas que tem sido responsável por salvar milhões de vidas em todo o
planeta. Mais recentemente, a história do trastuzumab, ou Herceptin, é
paradigmática.
Tudo começou com uma pergunta (como sempre): porque é que alguns
cancros crescem rapidamente e outros não? Num trabalho de pura ciência
fundamental, desenvolvido na década de 80 do século passado, Dennis J.
Slamon, financiado pelo National Cancer Institute, verificou que uma
proteína, a HER2, estava muito aumentada em vários cancros da mama, o
que levava ao crescimento acelerado das células. A partir daí surgiu a
ideia de que bloquear a acção desta molécula poderia atrasar a
progressão da doença. Na década de 90, e já com a participação da
start-up biotecnológica Genentech, criou-se o anticorpo monoclonal que
se fixa à proteína inibindo a sua acção. Hoje sabemos que o transtuzumab
melhorou em 30% o prognóstico do cancro da mama e abriu caminho ao
desenvolvimento de novas formas de tratamento para outros tipos de
cancro. Mas tudo começou com apenas uma pergunta.
Convencida de que ciência básica e ciência aplicada são as duas faces
de uma mesma moeda, a FLAD lançou os prémios Life Sciences, que
distinguem dois projectos, um em cada área - os primeiros vencedores
serão anunciados amanhã, dia 7. Os prémios, no valor de 400 mil euros
cada, pretendem estimular a competitividade e premiar a excelência - a
única palavra-chave em ciência.
Para que se possa dar um passo de gigante, são necessários muitos passos de bebé.
* Presidente do júri do Prémio Life Science 2020 da FLAD.
Licenciada
em Biologia em 1992, fez o mestrado em Imunologia em 1994 e o
doutoramento em Parasitologia Molecular em 1998. Trabalha no Instituto
de Medicina Molecular (IMM) como investigadora principal na Unidade de
Malária. É presidente da Associação Viver a Ciência e foi distinguida
com o Prémio Pessoa em 2013. É presidente do júri do Prémio Life Science
2020, lançado em Outubro de 2014 pela Fundação Luso-Americana para o
De-senvolvimento, o maior prémio de ciência atribuído à investigação em
Portugal.
IN "i"
06/01/14
.
Sem comentários:
Enviar um comentário