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O fascismo regressou?
Não, chegou a
extrema-direita 2.0
Muito se tem falado nos últimos tempos sobre a nova extrema-direita. Foram derramados rios de tinta a esse respeito, especialmente após a vitória de Donald Trump nas eleições americanas de 2016 e de Jair Bolsonaro no Brasil, em 2018. Monografias científicas, ensaios, artigos em diários e revistas propuseram, desde posições diferentes e muitas vezes distantes, análises históricas, politológicas e sociológicas.
Se parece haver um certo consenso acerca das causas do avanço das novas ultradireitas (o aumento das desigualdades, a precariedade do trabalho, as consequências da globalização, a crise da democracia liberal, a polarização causada por questões como os direitos das minorias, o crescimento das migrações, etc.), estamos ainda longe de o alcançar no que diz respeito a como denominar este fenómeno.
Há aqueles que propõem chamar-lhe populismo de direita radical, quem opte por nacional-populismo, quem advogue o pós-fascismo e os que defendem simplesmente a utilização do termo fascismo. Parece evidente que existe uma certa confusão. Além disso, também há divergências sobre se faz sentido utilizar uma macro categoria que inclua todos esses partidos e movimentos que, além de notáveis analogias, também têm algumas diferenças nada desprezíveis.
Não faz sentido falar de fascismo ou neofascismo para definir estas forças políticas. Para um fenómeno novo, é necessária uma definição nova: não podemos recorrer a conceitos já existentes, esticando-os até os esvaziar de qualquer significado
O Vox será ligeiramente distinto da Alternativa para a Alemanha (AFD)? O trumpismo é o mesmo que o húngaro Fidesz, o partido de Viktor Orbán? A Liga de Salvini e o Chega! têm muitas semelhanças? Não se trata de uma questão trivial, nem, ainda que possa parecê-lo, de um debate terminológico apenas académico. Definir um fenómeno é o primeiro passo necessário para o poder compreender.
Um fenómeno radicalmente novo
Por um lado, devemos partir de uma premissa: encontramo-nos perante um fenómeno radicalmente novo. A Liga, o holandês Partido pela Liberdade e o seu homónimo austríaco, a francesa União Nacional, Vox, o Partido dos Finlandeses ou o Chega! são diferentes do partido milícia fascista da época de entre guerras.
Não querem enquadrar a sociedade, instaurar um regime autoritário de partido único ou construir um “homem novo”. Não têm um projeto imperialista em termos de política externa. Quando muito, preenchem a sua retórica com a grandeza nacional do passado: a Hungria milenária, os mitos da Espanha da Reconquista ou o Make America Great Again.
Também não se assemelham aos partidos neofascistas da segunda metade do século XX. Os ultras da atualidade vestem camisa, blazer, por vezes usam mesmo gravata. Já não se apresentam de cabeça rapada, blusões de cabedal e suásticas tatuadas, fazendo a saudação romana em concentrações “autoguetizantes”. Isto não significa que entre eles não existam neofascistas, ou que não tenham, nalguns casos, o apoio de militantes ou formações neonazis.
Falam, dizem eles, a linguagem das pessoas vulgares, defendem o “sentido comum”, distanciam-se formalmente das ideologias do passado. Ao mesmo tempo, o mundo mudou. Radicalmente. Ainda que os nossos sistemas institucionais sejam filhos da época contemporânea e não tenham sofrido grandes transformações, as nossas sociedades já não são as mesmas. E não apenas devido à pandemia, obviamente.
Como se esta não fosse suficiente, o medo das mudanças rápidas que estamos a viver – no mundo do trabalho, comunicações, tecnologia, etc. – provocou uma verdadeira crise cultural e de valores dificilmente comparável com épocas anteriores. Estas formações são filhas deste início do século XXI, das suas transformações, medos e perceções.
Não faz, por isso, sentido falar de fascismo ou neofascismo para definir estas formações políticas. Para um fenómeno novo, é necessária uma definição nova: não podemos recorrer a conceitos já existentes, esticando-os até os esvaziar de qualquer significado.
Se considerarmos, portanto, que o populismo não é uma ideologia mas sim um estilo, uma linguagem ou uma estratégia política, também não podemos utilizar este conceito, seja qual for a forma como se enuncie. Bem entendido, tanto estes movimentos como os seus líderes são demagogos e utilizam as ferramentas populistas porque nos encontramos numa fase ou momento populista.
Defini-los por aquilo que é uma marca dos tempos – e, no fim de contas, um adjetivo – não ajuda na sua compreensão. Pelo contrário: acaba, consciente ou inconscientemente, por branqueá-los.
Três considerações
A tudo isto há que acrescentar outras três considerações. Por um lado, ainda que Donald Trump, Matteo Salvini, Jair Bolsonaro, Marine Le Pen e companhia recusem definir-se como de extrema-direita e joguem com o esbatimento das ideologias e a superação do eixo esquerda-direita, não há dúvida alguma de que se situam, ideológica e politicamente falando, na extrema-direita. Mesmo que possam apresentar alguns elementos inusuais ou peculiares nos seus discursos e propostas.
Não esqueçamos que também o fascismo do período de entre guerras se diferenciava das direitas reacionárias do século XIX. No entanto, isto não implica que não o consideremos de (ultra) direita.
Por outro lado, as novas tecnologias revolucionaram as nossas sociedades: não é necessário relembrar como e quanto mudou o papel dos meios de comunicação, as próprias relações sociais e a propaganda política nos últimos vinte anos. Todas estas formações demonstraram amplamente saber aproveitar as novas tecnologias mais e melhor do que os partidos tradicionais, começando pelas redes sociais – Facebook, Twitter, Instagram, Whatsapp, TikTok – e continuando com o tratamento de dados de forma a contornar a lei (ou até claramente ilegal), como demonstrou o escândalo da Cambridge Analytica.
Em terceiro lugar, as macro categorias são úteis para compreender os processos históricos. Ninguém, por exemplo, pôs em dúvida a utilização do conceito de liberalismo ou comunismo para falar de fenómenos muito distintos na época contemporânea. Como sabemos, a discussão tem sido diferente no caso do fascismo.
Há quem sustente que o termo é correto apenas quando aplicado ao regime de Benito Mussolini ou, quando muito, da Itália fascista e da Alemanha nacional-socialista, enquanto outros defendem que se deve alargar a todos os regimes autoritários de direita que chegaram ao poder na Europa de entre guerras.
Em última análise, a questão é se uma macro categoria é útil ou não. Pessoalmente, acredito que é útil na aceção do que propôs, há mais de três décadas, o historiador italiano Enzo Collotti no livro Fascismo, Fascismi, de 1994. E penso o mesmo para a atualidade.
De alguma forma, voltamos à questão inicial: porque não podemos, então, definir Salvini e Trump como fascistas? A resposta está nos contextos históricos: o fascismo foi uma experiência com limites cronológicos claramente estabelecidos (1919-1945), pelo que a macro categoria de fascismo é útil para o período de entre guerras. Agora precisamos de outra macro categoria para definir este novo fenómeno a que assistimos na atualidade.
Uma nova definição: extema-direita 2.0
Por estas razões, proponho definir este fenómeno como extrema-direita 2.0. Nesta definição, entraria toda uma série de formações políticas: a Frente Nacional francesa, a Liga Italiana, o Partido pela Liberdade da Áustria e Holanda, Irmãos de Italia, Vox, Chega!, o Brexit Party, Fidesz, Lei e Justiça, Alternativa para a Alemanha, o Partido Popular Dinamarquês, os Democratas Suecos, o Partido do Progresso norueguês, o Partido dos Finlandeses, Solução Grega, etc.
São membros dos grupos Identidade e Democracia e Reformistas e Conservadores Europeus no Parlamento Europeu, exceto no caso do Fidesz, recentemente expulso do Partido Popular Europeu (PPE) e sem grupo em Bruxelas. Entrariam também movimentos identitários que se movimentam nas mesmas coordenadas e fenómenos sui generis como o trumpismo e o bolsonarismo.
Trata-se de uma macro categoria na qual, todavia, não caberiam os partidos da direita tradicional, ainda que, nalguns casos, como os Tories britânicos ou o espanhol Partido Popular, assistamos a um processo de “ultradireitização” mais ou menos marcado. Ou seja, aquilo que Roger Eatwell e Matthew Goodwin designam como “nacional populismo suave” no livro Populismo – A Revolta Contra a Democracia Liberal”, de 2019.
Também ficariam de fora os governos e movimentos políticos liderados por Rodrigo Duterte nas Filipinas, Narendra Modi na Índia ou Recep Tayyip Erdoğan na Turquia, uma vez que são experiências fruto de culturas e contextos políticos muito diferentes dos ocidentais, Duterte, Modi e Erdoğan, bem como Putin, enquadram-se melhor na vaga autoritária global e estão além de uma definição como a de extrema-direita 2.0.
O que aqui se propõe é uma macro categoria não definitiva que, com o passar do tempo, poderá ser substituída por outra, mas que permite, por um lado, posicionar ideologicamente, de forma clara, estas formações e, por outro, sublinhar a sua diferença em relação ao passado, destacando a importância das novas tecnologias.
Todas as formações pertencentes à extrema-direita 2.0 têm, de facto, mínimos denominadores comuns: um nacionalismo marcado, a recuperação da soberania nacional, o questionamento do multilateralismo, um alto grau de euroceticismo (nos países da UE), um conservadorismo generalizado, o identitarismo, a islamofobia, a condenação da imigração, rotulada de “invasão”, o distanciamento formal das anteriores experiências de fascismo.
Mas apresentam também algumas divergências nada desprezíveis em temas como a economia (há formações ultraliberais como o Vox e outras, que advogam um Welfare Chauvinism, à semelhança da Frente Nacional francesa, hoje União Nacional), os direitos civis (há aqueles que defendem uma postura muito dura no que respeita ao aborto, os direitos LGTBI ou a família, enquanto outros grupos são mais abertos relativamente a estes temas) ou a geopolítica (há atlantistas e russófilos).
Efetivamente, como sugere Clara Ramas San Miguel, poderíamos classificar estas formações em duas categorias, os “social-identitários” e os “neoliberais autoritários”. Isto não significa que não façam parte do que a própria Ramas San Miguel define como “Internacional Reacionária”.
Adaptando aquilo que Ricardo Chueca comentou ao falar dos fascismos de entre guerras, podemos, assim, afirmar que “cada país dá vida à extrema-direita 2.0 de que necessita”. Em suma, as diferenças entre si não impedem que possam ser incluídas numa mesma macro categoria.
Em direção a uma democracia iliberal?
Todas estas formações apresentam outras características comuns. Em primeiro lugar, no que respeita às estratégias políticas, o seu principal objetivo é polarizar a sociedade, marcar o debate político com temas fraturantes e encaminhar a opinião pública em direção à ultradireita.
Um objetivo facilitado pelas redes sociais: daí que a questão da pós-verdade e das fake news não seja algo trivial, mas sim fulcral no seu modus faciendi.
Em tudo isto, direta ou indiretamente, é também percetível a influência do trabalho teórico que o francês Alain De Benoist, pertencente à Nouvelle Droite (Nova Direita), tem vindo a desenvolver desde o início dos anos setenta: através da releitura do marxista italiano Antonio Gramsci, o filósofo francês propôs que a ultradireita abandonasse o objetivo da tomada do palácio de Inverno e se centrasse na batalha cultural.
Ou seja, propôs substituir-se, por exemplo, os temas raciais, que depois de Auschwitz se tornaram inaceitáveis para a maioria da sociedade ocidental, por questões identitárias. Foi então que se começaram a utilizar os conceitos de etnopluralismo e diferencialismo, tão em voga hoje em dia.
Em segundo lugar, todas estas formações manifestam um taticismo exacerbado: enviam sondas para o debate público, continuamente, procurando decifrar que tipo de caminho podem percorrer e se é possível mudar de posição sobre assuntos cruciais em pouco tempo.
Pense-se na posição em relação ao euro e à União Europeia. Salvini e Le Pen passaram, em poucos meses, de defender o Italexit e o Frexit a apoiar uma reforma do projeto comunitário. Ou, mais recentemente, nas posições contraditórias destas formações e seus líderes acerca das medidas a adotar no combate ao coronavírus.
Em terceiro lugar, todas estas formações, além dos seus programas económicos, não negam formalmente a democracia em si, mas criticam a democracia liberal, rotulando-a de não democrática. Isto é, algo que está desligado da vontade do povo - daí a sua irritação pela separação de poderes e pelas regras básicas de funcionamento das democracias liberais, mas também a sua defesa mais ou menos explícita de um modelo que o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, retomando a expressão de Fareed Zakaria, definiu como democracia iliberal.
Como recordam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no livro Como Morrem as Democracias, de 2018, as democracias podem morrer, não só às mãos de homens armados, mas também de líderes eleitos, presidentes ou primeiros-ministros que as desgastam lentamente, de forma quase impercetível. Esta é, talvez, a grande novidade introduzida pela extrema-direita 2.0 em comparação com os seus antecessores do século XX.
Fica ainda muito por estudar, analisar e escrever acerca deste fenómeno, sem dúvida complexo, traiçoeiro, heterogéneo e em contínua evolução. Não há dúvida de que o aqui se sugeriu foi uma proposta interpretativa que, de momento, é mais um trabalho em progresso, ou uma aproximação, e não uma teoria definida e fechada. Para essa é necessário tempo. E perspetiva histórica.
* Historiador, investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade de Lisboa e professor associado na Universidade Autónoma de Barcelona.
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