.
* Activista estudantil
IN "PÚBLICO"
11/05/20
.
Por um ensino superior
feminista
Como feministas, devemos rejeitar uma estrutura de produção e transmissão do conhecimento que reproduza estereótipos, discriminações e violências de género.
As nossas universidades e politécnicos são ainda espaços
nos quais a desigualdade de género está profundamente enraizada. A
gestão e a direcção das instituições e o topo da carreira académica são
ainda domínios altamente masculinizados. Simultaneamente, os currículos e
os espaços de ensino são ainda dominados por um “olhar masculino” e por
uma prevalência do sexo masculino. Como feministas, devemos rejeitar
uma estrutura de produção e transmissão do conhecimento que reproduza
estereótipos, discriminações e violências de género.
Em relação quer a matrículas, quer a conclusão de um curso no ensino
superior, constatamos que as mulheres estão em maior número. Em todos os
graus — licenciatura, mestrado ou doutoramento —, as mulheres são mais
diplomadas. Apesar disto, tanto dentro como fora das instituições de
ensino superior, somos quem ganha menos e quem menos acesso tem aos
cargos de liderança. No mundo do trabalho, somos as mais expostas à
precariedade e ganhamos cerca de menos 22% do que os homens e, por
exemplo, somos apenas 6% dos conselhos de administração das nossas
empresas. A desigualdade salarial faz com que as mulheres recebam o equivalente a menos 54 dias de trabalho do que os homens (link is external).
Ora, as instituições de ensino superior não fogem a esta regra: as
mulheres, tendo menor acesso ao topo da carreira e a cargos de direcção,
não estão em pé de igualdade com os colegas homens. Entre os 31
presidentes ou reitores das universidades e politécnicos portugueses,
apenas cinco são mulheres (ISCTE, UCP, UAberta, UÉvora e IPCA). No que
toca aos corpos docentes, os dados podem ser enganadores. Regra geral,
existe uma relativa paridade entre homens e mulheres: em 2018, 55% dos
docentes eram do sexo masculino e 45% do feminino. No entanto, esta
paridade cinge-se maioritariamente à base da carreira. Ou seja, existe
um grande número de professoras auxiliares e adjuntas. No topo da
carreira, a situação é bem diferente: apenas uma em cada quatro
professores catedráticos (25%) é do sexo feminino.
Uma das questões que mais continua a pesar é a da
maternidade. As mulheres são ainda forçadas a escolher entre a
maternidade e uma carreira académica de excelência, mesmo em famílias
que não são monoparentais. Os homens, mesmo sendo pais, continuam a não
ser confrontados com esta escolha, pois o trabalho doméstico e de cuidar
das crianças continua a recair maioritariamente sobre as mulheres.
Assim, estas estão expostas a uma dupla jornada de trabalho – como
cientistas e como mães –, o que dificulta o seu estudo e a sua produção
intelectual.
No ensino superior, continua a existir uma diferença substancial no
capital simbólico atribuído aos cursos ditos “femininos” face aos ditos
“masculinos”. Enfermeira ou educadora de infância são profissões às
quais nos referimos no feminino pois são áreas tipicamente associadas às
mulheres. Simultaneamente, são áreas desvalorizadas face à medicina (o
médico) ou à docência no ensino superior (o professor). Historicamente,
as mulheres foram relegadas para o papel de enfermeiras que funcionam,
neste imaginário social machista, como uma espécie de ajudante do
médico.
Durante o Estado Novo, ser professora primária era uma das poucas
opções profissionais reservadas às mulheres. Ensinar crianças a ler e a
escrever era considerada uma tarefa que casaria bem com a feminilidade e
essência maternal das mulheres. Por outro lado, a vida das professoras
primárias era altamente controlada e regrada. Pelo contrário, cursos
como a Engenharia ou a Arquitectura são ainda cursos ditos “de homem”,
nos quais as matemáticas e as ciências exactas, tendo grande
importância, são consideradas como demasiado complexas para as mulheres.
Nas faculdades que leccionam esses cursos prevalece
ainda um ambiente de masculinidade tóxica e de desvalorização do
trabalho das mulheres. As estudantes da Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto (FAUP) fizeram recentemente uma campanha na qual
expuseram os insultos misóginos proferidos por professores e colegas
homens — desde o assédio sexual à afirmação de uma natureza feminina
inferior. Um dos exemplos mais chocantes que estas estudantes
partilharam foi o de um professor que diz às suas alunas: “Mulheres em
arquitectura só se for em cima do estirador”.
Desde o ensino básico que
nos apontam quais os cursos “masculinos” e “femininos”, que ouvimos
piadas sobre as mulheres que se aventuram no mundo dos cursos destinados
a homens: são frígidas, nenhum homem as vai querer, devem ser lésbicas.
Isto incute em nós, desde pequenas, um sentimento de incapacidade e
leva-nos a fazer escolhas diferentes das que faríamos se não fossem os
preconceitos com quais crescemos.
No espaço das instituições de ensino superior estamos expostas a todo
o tipo de violência sexual. Por um lado, as mulheres (alunas, docentes
ou investigadoras) são vítimas de assédio por parte de professores e
colegas: escutam piropos e comentários sobre a roupa e aparência e podem
chegar a ser alvo de toques indesejados. Muitas vezes, são os próprios
colegas homens que insinuam que os nossos resultados académicos se devem
à nossa aparência física ou mesmo a favores sexuais. Por outro lado, a
praxe perpetua fenómenos de violência machista. As raparigas são
obrigadas a participar em actividades de cariz sexual humilhantes e os
cânticos reproduzem a cultura da violação e estereótipos homofóbicos e
misóginos. A violência sexual não pode ser tolerada dentro destes
espaços. É imperativo que as vítimas possam denunciar os agressores
(sejam professores ou colegas) e que as suas queixam não sejam
desvalorizadas e remetidas para uma espiral infinita de burocracia.
O próprio conhecimento é iminentemente masculino. Os nossos
currículos secundarizam a produção teórica das mulheres (e das pessoas
não brancas), invisibilizando autoras que deram contributos importantes
aos diferentes campos disciplinares. Simultaneamente, a produção
científica das mulheres parece interessar apenas quando trata temas
relacionados com a condição feminina. A modernização teórica que os
nossos currículos necessitam não passa apenas por tornar visíveis as
mulheres como sujeitos políticos e dar destaque às suas lutas, mas
também por incorporar autoras do sexo feminino e dar espaço às teorias
feministas. As análises feministas nas ciências sociais permitem-nos ter
uma melhor compreensão das dinâmicas das violências sofridas pelas
mulheres e das importantes lutas que foram travadas.
A luta feminista urge ser travada no campo da Academia,
da ciência e das nossas instituições de ensino superior. Estudantes,
professoras e investigadoras deparam-se com preconceitos, desigualdades e
violências que lhes vedam o caminho a um pleno desenvolvimento pessoal,
intelectual e profissional. As faculdades devem ser espaços livres de
opressões nos quais nos sentimentos seguras e onde não queremos ouvir
comentários como: “As mulheres são como os diplomatas: quando dizem não
querem dizer sim e quando dizem sim querem dizer não”. Apesar das
dificuldades, nos últimos anos, cientistas, professoras e investigadoras
têm vindo a afirmar teorias e escolas de pensamento feministas e a
lutar pelo devido reconhecimento do seu trabalho científico.
Queremos que o conhecimento seja emancipatório e feminista e que as
nossas instituições permitam que todas as mulheres se possam desenvolver
livremente. Uma universidade verdadeiramente democrática e livre de
opressões tem, necessariamente, de ser feminista.
* Activista estudantil
IN "PÚBLICO"
11/05/20
.
Sem comentários:
Enviar um comentário