31/03/2020

GABRIELA GOMES

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Sobre as previsões da
 covid-19 em Portugal

Que modelos matemáticos estamos a seguir? Confiamos neles para nos darem a melhor opção na estratégia a seguir para diminuir o impacto da epidemia. Mas os modelos não são consensuais, a sua robustez depende não só dos dados mas também da abordagem. E é nesta nebulosa que precisamos de partilha, transparência e análise crítica.

No dia 12 de Março, o primeiro-ministro (PM) Britânico, Boris Johnson, acompanhado pelos seus assessores Prof. Chris Whitty (medicina) e Sir Patrick Vallance (ciência), comunicou ao Reino Unido a passagem da fase de contenção à fase de mitigação de covid-19. Seria implementado um conjunto de medidas com vista a atrasar a propagação da doença e alargar o pico epidémico para garantir capacidade de resposta por parte do sistema nacional de saúde. Com essa finalidade, Johnson determinou que pessoas com febre ou tosse persistente ficassem em casa para evitar contágio, aconselhou o cancelamento de visitas escolares ao estrangeiro e recomendou que pessoas com mais de 70 anos ou doenças crónicas não embarcassem em cruzeiros. Vallance avançou que o pico epidémico deveria acontecer a partir de Maio e a incidência de novos casos passaria a decrescer graças à imunidade de grupo que se iria desenvolvendo na população.

A comunidade científica reagiu de imediato à frouxa estratégia britânica, solicitando a publicação dos modelos matemáticos subjacentes. No dia 16 de Março, o Imperial College London publicou um relatório onde dava a conhecer os ansiados modelos e no dia 19 de Março o PM intensificou as medidas, decretando o encerramento de restaurantes, bares, cafés, cinemas, ginásios, escolas, etc.

Os modeladores matemáticos contrastam duas estratégias: mitigação e supressão. Ambas visam um achatamento da curva epidémica, mas de formas fundamentalmente distintas (ver gráfico). Mitigação consiste na aplicação de medidas ligeiras (do género daquelas que Boris Johnson decretou a 12 de Março) que adiam o pico e induzem a tão falada imunidade de grupo que pode evitar a ocorrência de uma segunda onda antes de dispormos de uma vacina. Supressão baseia-se na aplicação de medidas mais intensas capazes de manter o número médio de contágios causados por cada pessoa infectada abaixo do limiar epidémico (R0 = 1). Estas medidas impedem que se desenvolva imunidade de grupo, esperando-se a ocorrência de uma segunda onda de doença logo que seja levantado o distanciamento social. Esta estratégia requer assim mais cuidado com a continuidade das medidas sociais até que se disponha de vacinas ou outros fármacos que nos permitam responder à ameaça da segunda onda, mas tem mais potencial para reduzir o número de casos de doença e morte.

Em Portugal, todos os dias esperamos com ansiedade o anúncio dos novos casos confirmados no dia anterior, novos desfechos de casos previamente confirmados, e previsões para a evolução da epidemia nos próximos tempos. Os modelos em que se baseiam as previsões portuguesas não são, no entanto, revelados. Talvez essa falta de transparência seja menos crítica no Portugal de hoje do que no Reino Unido de 12 de Março dado as medidas intensas de distanciamento e isolamento social estarem exemplarmente em curso desde 16 de Março, mas impede a comunidade científica de participar no desenvolvimento de modelos mais finos e mais ajustados ao contexto português.

Tal como no Reino Unido e tantos outros países, também em Portugal os modeladores matemáticos da academia arregaçam mangas e constroem os seus modelos, mas é altamente frustrante ouvir dia após dia que as previsões e decisões da nossa Direcção-Geral da Saúde (DGS) continuarão a basear-se em modelos de uso interno e não com vista a serem publicados. Dado que existe uma distinção tão fundamental entre as estratégias de mitigação e supressão (curvas azul e laranja no gráfico) com implicações para o planeamento, não só médico como também social e económico a curto, médio e longo prazo, os modeladores querem perceber que tipo de curva segue o nosso país e que avaliação faz a DGS da situação.

Apelo, assim, à DGS que agilize a publicação dos modelos matemáticos em que baseiam as suas previsões e decisões para que as possamos compreender, dialogar e optimizar de forma aberta. A nossa academia está fortemente equipada com cientistas que podem e querem contribuir de forma activa e significativa para o estudo deste problema que é de todos.

* Matemática especialista em epidemiologia da Escola Superior de Medicina Tropical de Liverpool, no Reino Unido

IN "PÚBLICO"
30/03/20

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