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IN "PÚBLICO"
22/04/19
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A “nossa” casa está a arder
Se nada se fizer para repor a biodiversidade, não será com a redução de emissão de gases com efeito de estufa que se consegue limitar o “fogo lento” em que o planeta se encontra.
Em 1666, Anne Bradstreet escreveu um poema célebre “Sobre o incêndio
da nossa casa”, que mostra a tensão da poetisa entre o apego às coisas
terrenas e a consciência da sua vaidade. Numa noite o fogo fez em cinzas
todos os seus pertences e apercebe-se de que não há preço que pague o
que perdeu. São inúmeras as odes, as canções, os discursos, que usam
esta metáfora como chamada de atenção para o estado da “nossa” casa, o
planeta Terra. De que forma a ciência deve colocar as suas preocupações
sobre a perda de biodiversidade, a alteração e adulteração dos
ecossistemas, para definir agendas de investigação e aconselhar
políticas? Infelizmente, a informação sobre os riscos desta destruição
não tem gerado tanto impacte na opinião pública quanto as alterações climáticas.
Não é por falta de estudos científicos, nem de reportagens, mas antes
de transmitir a necessidade de valorizar o que a natureza nos dá. O
problema é que a sociedade, cada vez mais urbana, vive refém da
comodidade de uma certa qualidade de vida e sente mais as variações
meteorológicas do que a falta desta ou daquela espécie.
Após a Segunda Grande Guerra e com a necessidade de reconstruir e
investir no desenvolvimento, a pesca, desflorestação, produção agrícola,
colheita, uso e abuso de produtos químicos, para acelerar os processos,
causaram – e causam – inúmeros problemas ambientais. Ao longo destes
anos e em prol do poder económico, aumento de riqueza, necessidade de
alimento para uma crescente população, foram-se alterando paisagens,
uniformizando culturas, exterminando espécies, em particular predadores
de topo, tanto nos ecossistemas terrestres como marinhos. São vários os
artigos que mostram as consequências que a perda de biodiversidade tem
para a estabilidade dos ecossistemas e para os serviços que suporta.
Um desses serviços é a regulação climática, pouco falada e
compreendida pela população e políticos. Pelo contrário, as políticas
energéticas, para reduzir a emissão de gases com efeitos de estufa, são
apresentadas como medidas de mitigação das alterações climáticas, que
afectam a biodiversidade. Esquece-se que foi a perda contínua de
diversidade que tornou o planeta menos resiliente às alterações
climáticas. O aumento de gases na atmosfera veio apenas potenciar o que
já se esperava, a falta de resposta adaptativa de sistemas humanizados,
uniformizados e com baixa diversidade. Se nada se fizer para repor a
biodiversidade, não será com a redução de emissão de gases que se consegue limitar o “fogo lento” em que o planeta se encontra.
Uma das melhores medidas a implementar é incentivar a capacidade de
retenção de gases através do aumento de área florestal heterogénea e da
diversificação de ecossistemas. Não é por acaso que as Nações Unidas
declararam 2020-2030 como a década para a restauração dos ecossistemas.
Com esta estratégia, a biodiversidade pode ser reposta e os ecossistemas
podem funcionar como tampões das alterações que os gases com efeito de
estufa têm vindo a causar. É tempo de compreender que a melhor solução
para combater a alteração climática é recuperar habitats terrestres e
marinhos.
É ilusório pensar que os seres humanos, detentores de uma elevada
capacidade tecnológica e inteligência artificial, têm capacidade para
mimetizar a natureza. Desconhece-se que muitas das interacções presentes
entre organismos ainda não são conhecidas ou compreendidas. Na natureza
os sistemas são abertos, estabelecem-se redes, antagonismos ou
dependências entre diferentes espécies, microrganismos do solo, plantas,
animais, de acordo com os factores a que estão sujeitos. Umas vezes
interagem, outras estabelecem ligações simbióticas duradouras e unas,
como o caso dos líquenes ou dos corais. As doenças crónicas, as pragas,
as epidemias que hoje se sentem não são mais do que o resultado das
alterações e da uniformidade que se construiu. Antes, as paisagens eram
heterocromáticas, heterogéneas, em forma e estrutura. Hoje, mais parecem
paradas militares, todas alinhadas, certas, uniformes, controladas pela
tecnologia e pela inteligência artificial que avalia a produção
económica.
Os resultados da investigação dos ecólogos têm mostrado
que as ligações entre diferentes espécies em habitats contíguos
asseguram as funções e repõem os serviços dos ecossistemas. Daí a
insistência em repor e implementar a diversidade e preservação de
sistemas agro-silvopastoris, que sempre trouxeram a resiliência aos
ecossistemas mediterrânicos. No entanto, os ecólogos têm de saber
cativar a atenção dos jornalistas, mostrando a utilidade em saber ler e
entender os sinais da natureza. Certos temas, como o caso das abelhas e
polinizadores, têm sido visíveis e atractivos. Mas esta associação entre
cientistas e jornalistas necessita ser fortalecida, com ou sem casos
emblemáticos. Só assim pode ser possível consciencializar a sociedade e
os decisores políticos que a sustentabilidade do planeta Terra depende
da salvaguarda dos ecossistemas naturais e da biodiversidade que eles
encerram.
*Bióloga, professora catedrática da Universidade de Lisboa; presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia
IN "PÚBLICO"
22/04/19
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