21/10/2018

CÁTIA MIRIAM COSTA

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A democracia é o aqui e o agora

A tão propalada pós-verdade não é mais que um sintoma desta vida em formato de corrida, em que se misturam factos reais e simulados, porque o tempo é pouco para aferir da veracidade ou lógica de cada novidade que nos aparece.

Vivemos dias difíceis. Esta parece ser uma afirmação que levanta poucas dúvidas à maior parte de nós. Mas não são todos os tempos difíceis e fruto de uma trabalhosa construção de equilíbrios em cima de profundos desequilíbrios? Os desafios com que hoje nos confrontamos são diferentes dos do passado, mas não podemos considerar que somos os primeiros a enfrentar turbulência e incertezas quanto ao presente e ao futuro.

Estamos confrontados com sociedades cansadas de si próprias e com vontade de se cansar ainda mais, procurando permanentemente a experiência e transformando cada aprendizagem numa prova de aptidão para um ambiente competitivo e em que os recursos são diminutos. E não são apenas os recursos criados humanamente que são escassos. Criámos sociedades que delapidam rapidamente os recursos naturais, sem pensar que a competição por estes recursos lançará a humanidade num estado permanente de violência e disputa pela sobrevivência.

O “mais” tornou-se mais importante que o “melhor” e isso atravessa todas as esferas da vida humana. Mas esse mais determinou que um outro bem que aprendemos a medir se tornasse cada vez mais escasso, pelo que estamos sempre a viver com o menos: menos tempo para atingir o “mais”. Esse tempo que escasseia tem consequências na vida profissional, afetiva e também comunitária e societária. Vamo-nos habituando a aceitar raciocínios alheios e a tornar tudo muito claro entre o branco e o preto, eliminando todas as áreas cinzentas entre um e outro extremo.

A tão propalada pós-verdade não é mais que um sintoma desta vida em formato de corrida, em que se misturam factos reais e simulados, porque o tempo é pouco para aferir da veracidade ou lógica de cada novidade que nos aparece.

Não é nova a aceleração na vida das pessoas. Cada vez que temos uma inovação disruptiva que estreita distâncias e acelera contactos ou processos de produção, esta questão é levantada. Não é por acaso que no seguimento de um grande desenvolvimento científico e tecnológico, as pessoas se sentem desafiadas a novos comportamentos. Profissões antigas desaparecem e novas surgem, os meios de conhecimento parecem transformar-se e substituir cabalmente os pré-existentes, levando a que a vida humana como um todo sofra alterações. É nesses momentos que os equilíbrios são repensados, reavaliados e refeitos.

Estamos num desses momentos, mas com uma grande diferença: percebemos que estamos perante recursos naturais e recursos humanamente produzidos perto da saturação e estamos à procura de caminhos novos. Daí que seja natural extremarem-se os discursos e questionarem-se as soluções políticas pelas quais temos optado.

Quantas vezes amigos nossos nos dizem que temos de tomar uma causa e lutar por esta, como se fosse única, porque o nosso ativismo tem de ser direcionado? É uma opção muito válida, mas levanta um único problema: todos as questões humanas são complexas e todas as esferas da nossa vida se tocam. Assim, áreas da vida que nos parecem afastadas interligam-se e fazem parte de uma mesma realidade humana. Não podemos combater, por exemplo, a desigualdade social sem defender o meio ambiente, não podemos lutar pela igualdade cívica sem ser antirracistas, porque as sociedades em que vivemos são pluriformes e construídas por diversas facetas que nos dizem respeito.

No fundo, é importante sabermos de que lado estamos em cada uma destas questões, embora podendo direcionar naquelas áreas em que mais ativamente queremos participar. Mesmo que nos falte o tempo. Mesmo que os nossos juízos críticos sejam árduos de fazer e nos esgotem o bem mais precioso e de que não se fala, o tempo.

Informação pronta a servir
Mas de que consta essa falta de tempo, esse cansaço permanente? Talvez resulte de um simples facto. A tecnologia tem permitido acelerar as comunicações e a produção de conhecimento, também fruto de políticas públicas de democratização no acesso e à produção de informação e conhecimento.

Temos quase tudo à distância de um clique numa tecla (analógica ou virtual) dos nossos computadores, tablets ou smartphones. E ainda podemos optar por um papel passivo e apenas estar ligados a um canal de notícias ou a uma aplicação que nos oferece constantemente factos novos, quase ao segundo.

Nessa voracidade da quantidade do que procuramos e do que nos é oferecido, raras vezes exercemos o nosso direito à dúvida, à discordância ou à crítica. Mesmo sabendo que pode existir manipulação, mesmo estando conscientes que por vezes as fontes são duvidosas, a receção é passiva ou baseada nos cruzamentos desses mesmos dados através das redes sociais, ávidas de orientar a nossa opinião.

Produtores e recetores da informação e do conhecimento perderam o tempo para verificar factos, ouvir as partes envolvidas em cada acontecimento, porque o mais impera. Mais notícias, mais atuais e, se possível, simultâneas ao próprio evento que se relata, levam a menos tempo para a maturação do próprio acontecimento.

Como não só noticiar a cada segundo como reagir a cada minuto é importante, rapidamente surgem tomadas de posição sobre factos não cabalmente esclarecidos, muitas vezes sem que tenham tempo de ser explicados os seus próprios condicionalismos. Nesses momentos, forma-se a turba que gera a opinião. E opina-se muito sobre o que não se sabe. Pior que isso, formam-se grupos de opinião que limitam a que todos os outros tenham de ter a mesma opinião. E nesta voracidade de factos e contra-factos, sempre recheados de opiniões com base em poucos conhecimentos e em receções acríticas, o fenómeno da pós-verdade ganhou força.

E ganha uma força que quase censura a livre opinião, pois se é tudo tão claro, como poderá alguém duvidar? Mas a vida não é clara e os argumentos nem sempre são seguros. Saberemos nós das circunstâncias de determinado acontecimento? Provavelmente nem nós nem sequer os envolvidos.

Esta informação pronta a servir, imediata e que rapidamente se esgota, é apenas perigosa se enquanto recetores deixarmos o nosso espírito crítico de lado e continuarmos a exigir que a cada segundo haja uma qualquer novidade.

A nossa vida enquanto indivíduos está agora centrada nos ecrãs e monitores que nos rodeiam e não queremos que estes sejam estáticos. A sua permanente dinâmica acaba por nos dar a ideia que também nós os acompanhamos e também nós somos dinâmicos. Que estamos de alguma forma a participar na turbulência que nos rodeia. Cansados da monotonia, mas também esgotados para pensar por nós próprios e para interpretar o que nos rodeia, sem pressas nem constrangimentos opinativos, aceitamos como verdade o que pode não o ser.

Esta exigência de mais e mais informação e da constante atualização do que se passa em nosso redor resulta nesta pressão para que se criem factos, tantos quantos possíveis. E neste ciclo entre produção e receção, acabamos por estar enleados, porque de um lado se pretende dar resposta à procura e do outro lado apenas se pretende mais e mais para saciar a nossa curiosidade e justificar o nosso cansaço.

Como em todas as situações, existe quem esteja alerta e disponível para se aproveitar dos anseios e medos alheios. Os discursos extremistas encaixam bem nesta dificuldade em acompanhar a realidade ou em vê-la ampliada a tal ponto que tudo parece uma ameaça. As redes sociais permitem um acesso ao grande público não mediado que, sedento de mais e mais informação e factos, acaba por seguir quem sacia de alguma maneira as suas necessidades. E neste ponto, qual o papel da democracia, o regime que defende o livre debate?


Democracia, sinónimo de dignidade

Como Churchill disse e Sérgio Godinho eternizou em língua portuguesa na sua música “a Democracia é o pior de todos os sistemas, com excepção de todos os outros”, ainda que desafiada por tonalidades de pós-verdade ou pela voracidade do imediato. E, como também diz o cantautor, a democracia é “uma mãe mais doce que o mel”, por isso ela tem de educar para aquilo que é ser democrata. O debate livre é democracia, mas o tratamento indigno para as pessoas ou a exploração intensiva e irracional da natureza não o é. A democracia baseia-se exatamente no respeito pelos equilíbrios e, embora refletindo a vontade do povo, não dá o direito a ninguém que vença através de escrutínio a eliminação do adversário ou o seu tratamento indigno.

Por isso não podemos aceitar que na concorrência democrática e escudando-se nas redes sociais, candidatos ao poder político se escusem a debates públicos ou os enfrentem como ativos participantes no regime democrático. Quem defende a desigualdade e violência de género, o ódio racial, a exploração massiva dos recursos naturais, a violência e o armamento de cada cidadão viola os princípios do regime pelo qual se candidata.

Tem objetivamente de dizer publicamente que é antidemocrático na forma em que hoje entendemos a democracia. Não pode escudar-se na liberdade de opinião para defender tratamento indigno para os seus concidadãos. Não pode escudar-se na liberdade de debate para ofender os seus opositores. Não pode escudar-se na mentira para enganar o eleitorado. Porque quem joga o jogo da democracia tem de aceitá-lo. Caso contrário não poderá ser eleito e fazer o compromisso de honra de defendê-lo.

Porque a democracia não é um legado do passado, apesar das lutas esforçadas de muitos que deram a sua vida pela nossa liberdade. Também não é algo que queremos para o futuro “das nossas crianças”. A democracia é o aqui e o agora. Tolera a diferença, encoraja o debate, mas é intransigente para quem não a respeita.

A democracia somos nós que a fazemos e não o fruto dos políticos que temos.  Para a defendermos é preciso termos tempo. E dar do nosso tempo a essa construção multifacetada que é um regime político que defende a liberdade e a igualdade de oportunidades perante a justiça e o poder político. E até almejar em querer mais e combater as outras desigualdades que por aí andam, consoante a consciência e ideologia de cada um. A história não teve um fim e as ideologias também não, mas cabe-nos a nós mantê-las vivas e subordinadas aos valores democráticos.

IN "O JORNAL ECONÓMICO"
19/10/18

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