Os valores liberais
A revista "The Economist" acaba
de lançar a iniciativa Open Future, um conjunto de debates e eventos
que visam celebrar os valores do liberalismo, de que esta revista é
aliás um dos porta-estandartes mais conhecidos e de maior qualidade.
Segundo afirma a directora Zanny Minton Beddoes, trata-se de defender os
valores liberais numa altura em que estes se encontram sob ameaça por
parte do populismo em ascensão e do autoritarismo crescente.
Num
mundo em que florescem figuras tão sinistras como Erdogan, Orban ou
Duterte e em que em muitos países se assiste a um preocupante recuo ao
nível das liberdades e direitos civis e políticos, há efectivamente
valores e princípios liberais fundamentais, da liberdade de expressão à
separação de poderes ao primado da lei, que se encontram sob grave
ameaça e que é muito importante defender.
Porém, o próprio
liberalismo tem uma história repleta de contradições, pouco conforme aos
retratos mais simplistas e mitificados que dele são habitualmente
apresentados. Desde os seus primórdios, o pensamento e a prática
política liberais assumiram muitas vezes um carácter autoritário,
elitista e cúmplice em relação a diversas formas de violência e
exploração. O desenvolvimento do pensamento e da prática política
liberais teve lugar em articulação e activa conivência com o racismo, a
expropriação colonial e a dominação de classe, como aliás é
detalhadamente descrito por Domenico Losurdo em "Liberalism: a
counter-history". O liberalismo de Locke excluía os povos indígenas do
direito à propriedade, de modo a legitimar o império. Bentham defendia o
internamento dos pobres nas workhouses victorianas e o panóptico penitenciário.
A igualdade do liberalismo é historicamente uma igualdade formal no
seio da comunidade dos incluídos, constituída em termos étnicos e de
classe, em contraponto com a dominação e desumanização dos excluídos.
Percebemos
melhor que assim seja quando temos em conta que o liberalismo surgiu
historicamente como expressão ideológica no contexto da afirmação do
capitalismo como sistema mundial. Incorporou por isso todas as
contradições desta transformação, que ao mesmo tempo que afastou
atavismos pré-modernos e permitiu uma real emancipação em muitos planos
foi também fundada na violência de expropriações e subjugações tanto
metropolitanas como ultramarinas. Esta linhagem de contradição
estende-se até aos nossos dias. A "The Economist", que apoiou
intervenções militares ilegais no Iraque e na Líbia que viriam a causar
centenas de milhares de mortos, que o diga.
Para além disso, o
carácter apenas formal da igualdade no contexto do liberalismo oculta e
alimenta a iniquidade e a exploração. Há uma tensão fundamental entre a
liberdade económica irrestrita, a protecção da dignidade de cada um e a
salvaguarda do espaço de deliberação democrática. Tal como há um
carácter intrinsecamente autoritário nas soluções tecnocráticas
pós-democráticas preferidas de muitos partidários do liberalismo
económico, de que é exemplo a independência dos bancos centrais, outro
nome para a sua não-sujeição ao controlo democrático.
A viragem autoritária contra a qual alerta a The
Economist" pode por isso ser vista como uma degenerescência, ainda que
especialmente perigosa, de autoritarismos, exclusões e violências
existentes desde logo no seio do próprio liberalismo. Há valores e
princípios liberais que é realmente fundamental preservar. Mas fazê-lo
implica reconhecer e confrontar as contradições do próprio liberalismo,
sujeitá-lo à democracia, salvá-lo de si proprio.
IN "EXPRESSO"
19/04/18
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