Quando preferimos
a polémica à inovação
Sete falsas questões sobre a iniciativa de perguntas ao Governo,
ou o que dizer de um país que venera a Web Summit mas ridiculariza a
mais importante inovação democrática das últimas décadas?
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As polémicas e discussões públicas sobre as acções dos nossos
governantes são uma parte vital do “sistema imunitário” que mantém
qualquer democracia viva. No entanto, há ocasiões em que essas mesmas
“defesas” quase matam, de forma injustificada, importantes
desenvolvimentos na nossa forma de fazer política. Foi o que aconteceu
em Portugal esta semana e é vital que os portugueses – pelo menos
aqueles que prezam a inovação e a democracia – saibam disso.
Nestes últimos dias, tanto nos media como nas redes sociais, houve um aceso debate em torno da iniciativa governamental
que reúne algumas dezenas de cidadãos para que estes desenvolvam um
conjunto de perguntas que posteriormente colocam aos membros do governo.
Um processo idêntico já fora realizado há um ano, aquando do primeiro
aniversário do actual governo. Avaliando pelo relatório então elaborado e
a reputação dos organizadores de ambos os eventos, será seguro dizer
que não se tratou de uma encenação e que estes 50 cidadãos trabalharam
efectivamente em conjunto, tendo desenvolvido eles próprios as perguntas
que colocaram ao governo. Logo, o que aconteceu na Universidade de
Aveiro foi uma genuína consulta pública e será falso dizer que os
participantes foram meros “figurantes pagos”. No entanto, a polémica continua acesa – e foca-se, na maioria dos casos, numa série de falsas questões.
Envolvo-me nesta discussão a título pessoal e numa situação relativamente confortável. A organização que integro
não está (nem esteve previamente) envolvida nesta iniciativa do
governo. Por outro lado, o Fórum dos Cidadãos partilha muitos dos
“métodos” usados pelos colegas que realizaram estas duas consultas
públicas e que agora vêem o seu trabalho no centro de uma tempestade
política. Logo, o meu ponto de vista é aquele de quem simultaneamente
conhece e usa estes métodos mas “não tem um cavalo nesta corrida”. O meu
objectivo é ajudar a esclarecer 7 falsas questões no centro da actual
polémica, fornecendo informação adicional para aqueles que tenham
realmente curiosidade sobre como se conduzem processos de consulta
pública e queiram entender o panorama internacional em que se integra
esta iniciativa.
(Uma advertência: eu gosto de escrever e expor
ideias de forma sucinta. Infelizmente, nunca será possível explicar e
“defender” uma ideia inovadora em tão poucas palavras quantas são
necessárias para a condenar sumariamente aos olhos do público. Este
texto é, por isso, mais longo do que eu gostaria — e também bastante
mais longo do que os vários textos de opinião que o motivaram. Para
compensar, estruturei-o de forma a que o leitor possa ler apenas as
partes que dizem respeito às dúvidas que esta recente iniciativa lhe
suscitou.)
Falsa Questão #1:
Que fantochada fazer isto com apenas 50 cidadãos…! Deviam era deixar todos os portugueses participar.
Existem
duas formas de realizar consultas públicas, podendo escolher-se entre
métodos de “participação aberta” ou de “participação fechada”. Nos
métodos “abertos”, todos os cidadãos interessados podem participar; nos
métodos “fechados”, apenas aqueles recrutados podem fazê-lo. Ambos têm
vantagens e desvantagens.
Um método aberto permite recolher as
opiniões de um número muito mais vasto de cidadãos, no entanto sabemos
que — como a participação depende da motivação e disponibilidade de cada
um — a enorme maioria das respostas tenderá a representar os pontos de
vista dos cidadãos que têm o tempo, os recursos e a motivação
necessários para participar nesse processo de consulta pública. Ou seja,
o “retrato” da opinião pública que geram tenderá a sobre-representar a
perspectiva daqueles que
- têm opiniões mais fortes e extremas (tal como ocorre nas redes sociais, os comentários mais inflamados e radicais dominarão); e/ou
- têm o tempo e o dinheiro para participar nestes processos.
Um método fechado — como aquele usado nesta recente iniciativa
do governo —, por sua vez, “deixa de fora” a enorme maioria dos
cidadãos. No entanto, tem duas fortes vantagens: (i) por se tratar de um
grupo muito mais pequeno, o grupo pode aprender, reflectir e discutir
de forma construtiva (o que é impossível num método aberto a toda a
população); e (ii) aqueles que participam podem ser seleccionados usando
modernas técnicas de amostragem, o que paradoxalmente faz com que uma
consulta pública “fechada” possa ser muito mais “representativa” da
população geral (em termos demográficos e socioeconómicos) do que um
processo onde todos são convidados a participar — mas só um pequeno
subconjunto da população o faz.
A tendência mais recente é
realizar exercícios de consulta pública que combinam métodos de
participação aberta com métodos de participação fechada, obtendo-se
assim “o melhor de ambos os mundos”. Por exemplo, numa primeira fase,
todos são convidados a contribuir com ideias online ou por via postal;
e, de seguida, um conjunto seleccionado de cidadãos reflecte e analisa
“a fundo” as contribuições submetidas na primeira fase. (Foi, a título
de exemplo, o que fizemos no Fórum dos Cidadãos organizado no início
deste ano.)
No entanto, na impossibilidade de combinar métodos
abertos com métodos fechados, existe um cada vez maior reconhecimento da
importância e utilidade de optar por métodos fechados — tais como foram
usados nesta iniciativa governamental.
Falsa Questão #2:
Mas como são escolhidos esses participantes? Claro que os governantes
escolherão sempre vozes que lhes sejam favoráveis!
Nestes
processos, os participantes são tipicamente escolhidos usando técnicas
de amostragem assentes num sorteio. O objectivo é gerar uma pequena
amostra da população que espelhará (na medida do possível) a diversidade
demográfica e socioeconómica da população em geral.
A idoneidade
do processo é tipicamente assegurada através do envolvimento de
parceiros externos na selecção e recrutamento dos participantes — por
exemplo, universidades. Foi o que aqui aconteceu.
Falsa Questão #3:
Por que não eu?? Sou tão cidadão como qualquer um desses 50,
logo tenho igual direito a participar neste processo!
Há várias observações importantes a fazer a este respeito:
- Começando pelo óbvio: não existe, hoje em dia, um “direito” juridicamente reconhecido em Portugal a participar em sessões de perguntas ao governo ou outros exercícios específicos de consulta pública.
- Como vimos no ponto #1, há formas muito diferentes de consulta pública e algumas têm, por definição, um número limitado de participantes. Logo, nem todos poderão participar em cada consulta específica.
- Neste cenário, a “igualdade” entre cidadãos é atingida pela selecção aleatória. Quando estes processos são realizados de forma rigorosa, todos têm uma igual probabilidade de ser chamados a participar.
Mas então os cidadãos foram pagos?!
É prática comum — de facto, é fortemente recomendado — remunerar os cidadãos que participam neste género de processos. Algumas observações:
a)
Processos de consulta pública “deliberativos” — nos quais os cidadãos
aprendem sobre um tema e discutem-no entre si — tipicamente envolvem
entre um dia e vários dias de trabalho intenso. A maior parte de nós
estará de acordo que o trabalho deve ser remunerado. Mesmo que
argumentemos que se trata de um “dever cívico” participar, quando
chamado, numa consulta desta natureza, rapidamente descobrimos que a
execução de um dever cívico é tipicamente acompanhada por um pagamento.
Por exemplo, os cidadãos que servem num júri num tribunal
norte-americano são remunerados. Nos Estados Unidos, é fácil
depararmo-nos com queixas
por a remuneração deste dever cívico ser tão baixa (os tribunais
federais pagam actualmente cerca de 50 dólares diários) — e virtualmente
impossível encontrar alguém a insurgir-se pelo facto deste trabalho ser
remunerado pelo estado.
b) Para obter uma amostra que seja
adequadamente “representativa” em termos socioeconómicos da população
geral, remunerar os participantes é vital. É um facto assente entre
cientistas políticos que a participação cívica é maior entre as camadas
mais privilegiadas da população. É fácil entender porquê:
Primeiro,
os cidadãos com menos recursos tendem a ter níveis de educação formal
mais baixos e a sentir — erradamente — que lhes poderão faltar as
capacidades ou conhecimentos necessários para desempenhar bem o seu
papel numa consulta pública assente em análise de informação e
discussões de grupo. Logo, por comparação com os cidadãos mais
privilegiados, os cidadãos com menos recursos tenderão a excluir-se
destes processos, declinando o convite para participarem. Sabemos, por
experiência, que um incentivo económico desempenha um papel importante
em promover a sua participação.
Segundo, e mesmo que desejem
participar, os cidadãos com menos recursos económicos tenderão a ter
maiores dificuldades práticas em reorganizar a sua vida quotidiana por
alguns dias para poderem participar. Pode ser necessário realizarem
despesas adicionais para assegurar tarefas que os próprios tipicamente
desempenham, como por exemplo o cuidado dos filhos ou outros familiares
dependentes. Também por esta via remunerar os participantes desempenha
um papel importante em assegurar a representatividade socioeconómica da
amostra.
Falsa Questão #5:
OK, talvez faça sentido serem pagos mas… pagos pelo próprio governo? Nunca serão neutros!
Numa
consulta desta natureza, logo no início é tornado claro a todos os
participantes que o seu envolvimento é um “one-off”. Os participantes
sabem, à partida, que (i) o recrutamento é feito por sorteio e (ii) a
probabilidade de eles voltarem a ser chamados é mínima e totalmente independente do seu comportamento ao longo do processo.
Logo, desde que acreditemos que o processo foi conduzido de forma
idónea (novamente, o envolvimento de uma terceira entidade reputada como
uma universidade pode ser útil), não há razões para nos preocuparmos
com a origem do financiamento.
Também por exclusão de partes
chegamos à inevitabilidade do financiamento público: estes processos são
caros (um tema ao qual ainda regressarei) e não houve, até agora,
entidades privadas portuguesas que tenham financiado iniciativas
semelhantes.
Falsa Questão #6:
Quem me assegura que o
processo não é de alguma forma manipulado e os participantes são
influenciados indevidamente?
Tal como em vários dos
pontos anteriores, também aqui os parceiros externos podem desempenhar
um papel fundamental. No Fórum dos Cidadãos, estamos a trabalhar para
assegurar a neutralidade e imparcialidade dos processos que usamos, bem
como da informação apresentada aos participantes, consultando um painel
de políticos onde estarão representados todos os partidos políticos com
assento na Assembleia da República. Estas, e outras, medidas ajudam a
minimizar os riscos de perversão do processo e, assim, a assegurar a
confiança do público. O que importa é recordarmos que a nossa sociedade
desenvolveu já múltiplos mecanismos (e “camadas”) de supervisão e
controlo de decisões quando estas podem “corromper” um processo que nos é
importante. (Pense-se, por exemplo, no processo de contagem de votos ou
no funcionamento dos tribunais.) De forma idêntica, também aqui não
existe nenhuma impossibilidade de minimizar esses riscos de manipulação.
Falsa Questão #7:
É um escândalo gastar 45.000€ nisto…!
Uma
democracia tem custos. Como vi, no passado, escrito a respeito das
despesas em educação (ignoro a origem da frase): “se te parece caro
investirmos em educação, mais caro te parecerá o resultado de não o
fazermos”. Um sistema político que ouve mais os cidadãos e os tenta
envolver, de forma informada e reflectida, mais de perto e com maior
frequência na tomada de decisões, gastará, necessariamente, mais
dinheiro do que um onde esses inputs não são buscados. Em qual deseja
viver? Como vimos acima, estes processos — em Portugal ou fora —
requerem pagar aos participantes e os fundos são tipicamente públicos. É
certamente importante, enquanto cidadãos, discutirmos e estarmos
vigilantes a respeito de como são gastos fundos públicos. Mas, quando as
nossas democracias passam pelos desafios que actualmente enfrentam,
poucos serão aqueles que defenderão publicamente torná-las menos abertas
à participação, informada e reflectida, por membros do público.
Há outras perguntas que podem — e estão a — ser feitas a respeito desta iniciativa. (Veja-se, por exemplo, este breve comentário
de Miguel Poiares Maduro.) No entanto, e como vimos acima, alguns dos
aspectos que mais “chocam” num primeiro encontro com consultas públicas
deste tipo são, na realidade, fundamentais se quisermos realmente
escutar a voz informada e reflectida dos cidadãos portugueses.
Tomemos, meramente como exemplo, a coluna de Clara Ferreira Alves no Expresso.
O artigo refere várias das críticas que listei acima e classifica esta
iniciativa como uma “manifestação pseudodemocrática” e um sinal do
subdesenvolvimento português face a “sociedades mais avançadas e
libertas do conformismo e da obediência”.
O ideal democrático que
Ferreira Alves refere, os “town hall meetings” norte-americanos, é uma
escolha particularmente surpreendente para quem acompanha a realidade
política norte-americana. Ainda há poucos meses foram amplamente noticiadas
as cenas de gritos, insultos e pandemónio generalizado que
caracterizaram os “town hall meetings” sobre a reforma do sistema de
saúde. (Caso dúvidas houvesse, exactamente o mesmo ocorrera com as
reformas introduzidas por Obama em 2009.) Podemos certamente argumentar
que os “town hall meetings” são a marca de uma democracia vibrante e um
prezado ritual político norte-americano com uma longa história. No
entanto, e pelas razões que os vídeos acima deixam claras, muito poucos
os apontariam em 2017 como um exemplo a seguir em termos de como
“auscultar” o público sobre questões importantes. Seria o equivalente a
defender queimar carvão como forma de gerar energia, invocando a longa
história do uso humano desse combustível. Felizmente, em 2017 temos
tecnologias melhores para atingir ambos os fins.
Aliás, os métodos
empregues nesta iniciativa que Ferreira Alves critica tiveram as suas
raízes (na sua encarnação contemporânea) nos próprios Estados Unidos.
Surgiram precisamente como uma tentativa de contornar as incontáveis
limitações de sessões públicas como os “town hall meetings”. O Jefferson
Center, reputada organização não-governamental norte-americana, há mais
de quarenta anos que conduz processos deste tipo sob a designação de
“citizen juries”. Organizações como a Healthy Democracy — e, até
recentemente, a AmericaSpeaks, cujo mais conhecido projecto envolveu
centenas de milhares de cidadãos por todos os EUA e se chamava
justamente “21st Century Town [Hall] Meetings”, tornando explícita a
tentativa de ultrapassar os problemas típicos dos “town hall meetings” —
ajudam governantes e instituições públicas americanos a escutar os
cidadãos de uma forma que permite evitar as tristes cenas que com
frequência caracterizam as tradicionais consultas públicas.
E esta
história não acaba nos EUA. Semelhantes iniciativas — combinando
participação “fechada” por sorteio (ou amostragem); discussões moderadas
por “facilitadores” profissionais e sujeitos a escrutínio; e
remuneração de participantes (tipicamente com fundos públicos) — são
comummente realizadas por todo o mundo e vistas como uma importante e
inovadora forma de consulta pública. Veja-se, a título de ilustração, os
exemplos alemão, canadiano, australiano ou irlandês. A rede Democracy
R&D (da qual o Fórum dos Cidadãos
é uma das organizações fundadoras) reúne quase duas dezenas de
organizações da sociedade civil, espalhadas um pouco por todo o mundo,
que se dedicam a desenvolver e disseminar esta nova maneira de o público
se fazer ouvir.
Em conclusão, é certamente importante que sejamos
cépticos e vigilantes, questionando tanto a motivação como todos os
aspectos da implementação de qualquer iniciativa governamental —
incluindo esta. No entanto, convém que — através desse mesmo salutar
processo de escrutínio — não “queimemos” algumas das mais promissoras
ferramentas ao nosso dispor para revitalizarmos as nossas democracias.
Como as notícias um pouco por todo o mundo tornam claro, as nossas
sociedades precisam de mais — não menos — ocasiões onde a voz informada e
reflectida dos cidadãos se faça ouvir.
* Professor Convidado na Universidade de Nova Iorque e Membro do
Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa. É o autor de
“Reinventar a Democracia: 5 Ideias Para Um Futuro Diferente” e um dos
fundadores do Fórum dos Cidadãos.
IN "OBSERVADOR"
07/12/17
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