Praxes em Lisboa
Em Lisboa, os estudantes dedicam-se às praxes como se a universidade
fosse o exército e os alunos precisassem da coesão de uma unidade de
combate.
O ano lectivo universitário já começou… e com o novo ano lectivo,
veio a praxe, a grande “tradição” supostamente instituída para integrar o
novo estudante na universidade e o ajudar a sentir em casa.
Embora a primeira onda de humilhação nas ruas de Lisboa tenha
diminuído nestes últimos dias, a praxe, como o futebol, tem arranjado
maneira de se espalhar através do ano inteiro. Espero poder dormir um
par de noites descansadas antes que tudo comece de novo, a partir do
nada, por capricho de uns “doutores” carentes do 2º ano (e uns ainda
mais carentes do 3º e 4º, para além daqueles tipos esquisitos que
continuam a andar por lá anos depois), os quais provavelmente só
precisam de encontrar um amigo. O que já aguentei e ainda vou aguentar
são gangues de “caloiros” na rua, aos 30 e 40 de cada vez, por baixo da
janela do meu quarto, a cantarem como se estivessem a sofrer um ataque
de histeria em massa. O líder, vestido com uma farda à Hogwart’s, fica
em cima de uma caixa, a abanar uma grande colher de pau. Tem o ar de
quem gosta de ser adorado pelas massas, à Mussolini.
No meu tempo, na Grã-Bretanha, chegávamos à universidade como coelhos
frescos para abater. Éramos todos forasteiros, porque a tradição
britânica era ninguém estudar na sua própria cidade. Lá nos tentávamos
safar. Colocadas as caixas de tralhas e o edredão no nosso novo quarto,
fosse lá onde fosse, chorávamos um bocado e depois começávamos o
processo lento de perceber como as coisas funcionavam. Em muitas
universidades, a primeira semana chamava-se “Semana dos Caloiros”, e
havia eventos e festas para os caloiros se conhecerem uns aos outros e
aos estudantes carentes do 2º ano que organizavam os eventos da semana.
Tive a sorte de não ter de assistir a nenhuma Semana de Caloiros.
Estudei numa faculdade de belas-artes, e os estudantes de artes eram
demasiado “cool” (“cool” como o Fonz, ou seja, nada “cool”) para serem
vistos a organizar ou a assistir a tais festas e eventos. Estávamos
concentrados em exercitar o nosso ennui e em procurar absinto.
Semana de Caloiros ou não, acabávamos por conhecer os colegas de
casa, embebedávamo-nos, tentávamos não engravidar ou apanhar sífilis ou
morrer, e íamos às aulas, até que um dia nos sentíamos em casa.
Aqui, parece que os costumes são outros. Em vez de se habituarem
lentamente à sua nova situação, os “caloiros” são arrebanhados pela
cidade toda, obrigados a atividades estúpidas e sofrendo rituais
humilhantes, bullied por “doutores” carentes do 2º ano. Como se a
universidade fosse o exército, e os estudantes precisassem da coesão de
uma unidade de combate. É verdade: alinhar com a praxe não é
obrigatório. Mas para quem vem de longe, intimidado pela estranheza de
tudo, sob a pressão dos colegas, haverá real liberdade de escolha?
O mais engraçado é que, em Lisboa, nada disto corresponde sequer a
uma tradição genuína. Um dia, uns estudantes carentes do 2º ano olharam
para Coimbra e pensaram “olha, vamos fazer uma coisa igual!” É estúpido.
E ainda parece mais estúpido quando temos em conta que tem havido
mortes relacionadas com a praxe, mortes que nunca vão ser realmente
resolvidas por causa do código de silêncio da tribo. Tudo por causa dos
egos de uns doutores carentes do 2º ano (e do 3º e do 4º) que querem
abanar as suas colheres e passear na cidade com as suas capas tolas.
IN "OBSERVADOR"
04/10/15
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