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IN "O JORNAL ECONÓMICO"
14/02/20
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Despenalizar não é querer,
é respeitar
Despenalizar a eutanásia, e o suicídio assistido, não significa ser a favor da eutanásia. Mesmo nas circunstâncias restritas que vão ser discutidas e eventualmente aprovadas dia 20, o Estado não será a favor da eutanásia. Dizer o contrário é tão falso como, permita-se o paralelo, dizer que o Estado é a favor da interrupção voluntária da gravidez porque a despenalizou.
Dia
20 de Fevereiro, quase dois anos após a última discussão parlamentar
sobre o tema, de novo várias propostas sobre a despenalização da
eutanásia sobem a plenário da Assembleia da República.
São cinco
propostas restritivas, que despenalizam a antecipação da morte quando
pedida por pessoa humana adulta em condição de sofrimento terminal e
irreversível e em plena posse das suas capacidades de deliberação.
Todas, sem excepção, têm isto em comum. Além disso, são propostas
prudentes, que estabelecem um protocolo minucioso de acompanhamento,
desde o pedido consciente, sempre reversível, à exigência de que seja um
processo consciente até ao fim.
Mais passos e mais reiterações
apenas trarão mais tortura e mais sofrimento a pessoas em sofrimento
incurável, pessoas que a sociedade reconhece não terem outra esperança
se não a de que o tormento termine. Respeitar a vida, as vidas vividas,
com rosto, corpo e alma, cada uma singularidade absoluta tem de incluir
o respeito por esta última vontade. As últimas vontades são, por
princípio, irreversíveis e o irreversível é algo que, por princípio,
deve estar fora dos poderes de um Estado.
Desde logo, o poder do
Estado violentar a consciência de cada cidadão com a tirania de um
referendo em que uns decidirão sobre a consciência de todos os outros.
Importa sublinhar esta assimetria: são aqueles que não querem a
despenalização a quererem impor demasiado a todos. Para quem quer a
despenalização, não se tratar de impor, mas de respeitar. Nem sequer se
trata de defender a liberdade de cada pessoa, mas de respeitar a sua
vida concreta, de carne e osso, mas, além disso, de família e amigos, de
carácter e valores de que ninguém deveria ter de prescindir apenas
porque está à mercê de um poder do Estado dizer não.
Muitas
matérias podem e bem ir a referendo, mas esta é um ultraje à própria
matéria referendada. E nada o justifica. Nem nos fins nem nos meios. Por
princípio, não se referenda a vida. Bem o reconhecem os partidos com
assento parlamentar e até a Conferência Episcopal. Ainda assim, os
bispos preferem ir contra os princípios. Não se compreende. E no
congresso do PSD da semana passada, Paulo Rangel clamou que está a
decidir-se nas “costas dos portugueses”. Mas como se pode dizer isto?
É
indesmentível que as propostas que se discutirão no dia 20 são o
culminar amadurecido de um debate público que já leva anos, tendo
percorrido todos os foros de discussão, televisões, rádio,
universidades. Debates promovidos pelo parlamento, pelos partidos,
pelos media, pela Comissão Nacional para as Ciências da Vida.
Não se pode dizer que a sociedade não esteja familiarizada com o debate e
não se pode dizer que estas propostas não incorporem o debate da
sociedade portuguesa.
Fique claro. Despenalizar a eutanásia, e o
suicídio assistido, não significa ser a favor da eutanásia.
Mesmo nas
circunstâncias restritas que vão ser discutidas e eventualmente
aprovadas dia 20, o Estado não será a favor da eutanásia. Dizer o
contrário é tão falso como, permita-se o paralelo, dizer que o Estado é a
favor da interrupção voluntária da gravidez porque a despenalizou.
Nada
podia ser mais grave do que pôr um debate tão fundamentalmente ligado à
vida concreta das pessoas em termos morais e políticos grosseiramente
errados. Infelizmente, opositores à despenalização têm-no feito.
Primeiro, opondo vida e morte. Mais recentemente, pondo em alternativa
eutanásia e cuidados paliativos. São duas ideias erradas e que merecem
reflexão moral e política cuidada.
É categoricamente falso que uns
estejam pela vida e outros pela morte. No máximo, uns estão por uma
maneira de encarar a vida e outros por outra. E, no entanto, entre as
duas a diferença é significativa.
O que deve prevalecer: o
respeito pela vontade de quem concretamente vive uma vida ou o respeito
pela vida independentemente de quem a vive e a sofre? Que dignidade se
respeita, a da vida concreta, humana, com biografia, sonhos, memórias,
alegrias e tristezas, ou uma abstracção a que se chama biologicamente
vida? Que vida é essa que julgam sacralizar quando, na verdade, a
separam da vida concreta humana de cada pessoa? Que vida é essa anónima
que separam e opõem à vida com nome próprio, única que pode ser tratada
por tu? Que vida transcendente à vida de cada um é essa?
Eu
respondo empregando o “tu” que interpela, como nos textos religiosos: é a
vida que te é dada e que te é tirada sem que uma palavra tenhas a dizer
sobre o assunto. É a vida que tens de aceitar, na vinda e na ida, como
uma transcendência. É a vida pensada abstractamente como uma categoria
da transcendência. Mas isso não é pensar a vida civilmente, mas
religiosamente. Para um estado laico, plural e tolerante, todas as
concepções de vida são boas desde que entre si se tolerem. Se para uma a
vida é tão transcendentemente tirada como foi dada, então a eutanásia
está para a morte tão fundamentalmente errada como qualquer controlo
está para a natalidade.
Não é difícil de perceber. Se quem
subscreve esta perspectiva da vida quer vivê-la assim, se a Igreja
Católica o quer, nada a impede de o fazer na sociedade portuguesa e no
Estado português. E deve merecer todo o respeito. Mas é chocante querer
que o Estado português não permita à sociedade outra concepção de vida. É
intransigência. E comporta um elemento de intolerância e
instrumentalização inaceitáveis. A vida é um valor absoluto, mas nenhuma
religião, por isso, pode impor que a vida seja uma transcendência.
E
também é categoricamente falso que a despenalização da eutanásia seja,
na intenção ou na prática, uma alternativa aos cuidados paliativos. De
forma absolutamente inequívoca, o Estado está tão obrigado a
desenvolver, junto, dentro ou ao lado do seu SNS, uma rede de cuidados
paliativos, como está obrigado a não propor, encorajar, ou de qualquer
outra forma activa, induzir cidadãos a escolher a eutanásia ou o
suicídio medicamente assistido como forma de morrer.
O Estado não
se dispensa da sua função social, desenvolve uma rede cuidados
paliativos, assume as suas responsabilidades e deixa a eutanásia à
consciência responsável das próprias pessoas, não fugindo à
responsabilidade de as apoiar, quando essa é a sua vontade e quando essa
é uma vontade socialmente compreendida. O Estado não propõe a
eutanásia, despenaliza-a.
Pode argumentar-se que nada se tem
contra o suicídio e que só não se aceita que o Estado, o seu Serviço
Nacional de Saúde e os seus profissionais se disponham a ser
instrumentos de uma morte que se dá. Simplesmente, e como teria de ser
sob um preceito de respeito, todas as propostas de despenalização
garantem o direito de objecção de consciência aos profissionais de
saúde.
Mas, salvaguardadas as convicções dos médicos e
enfermeiros, queremos realmente um Estado Pôncio Pilatos que age como se
dissesse “daqui lavo as minhas mãos”? Deve o Estado virar as costas a
quem se lhe dirige, motivado nas razões de sofrimento socialmente mais
respeitáveis, e lhe pede ajuda? Cuidar não pode ser apenas a instância
das nossas convicções.
Argumenta-se e bem que autonomia, respeito,
responsabilidade são palavras desprovidas de significado sem uma
referência aos outros. Mas este pensamento terá pouco valor moral se não
nos dispusermos a aceitar o outro como integralmente um outro, tão
igualmente outro como eu sou eu. Verdadeiramente, essa é a razão moral
profunda por que nenhuma vida mais vale do que outra.
Por isso,
todas as propostas que vão ser levadas ao nosso parlamento partilham o
mesmo sentir civil profundo: de que é injusta a lei que condena pessoas a
um sofrimento terminal e irreversível que elas não querem, de que é
injusta a lei que reduz a vida concreta à abstracção da vida biológica,
de que é errada a política de saúde que julga curar sofrimento complexo
tornando-o indolor.
Quem pede pelo socorro da morte medicamente
assistida não está a pedir que lhe anestesiem a vida, ou a morte. Está a
pedir que o ajudem a viver a sua vida até ao fim. Precisamente porque
todas as vidas são igualmente dignas. E também porque nenhum cuidado,
por extremoso que seja, tem o direito de se substituir ao respeito por
aquele de quem se cuida. Posso concordar com Tolentino Mendonça quando
afirma “diga-se o que se disser, a vida é a coisa mais bela.” Sim, é
verdade, mas essa coisa mais bela a que chamamos vida tem viver e tem
morrer. E só a dignidade de ambas é bela.
* Filósofo, professor na Universidade da Beira Interior
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14/02/20
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