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O regresso da política
como arte do conflito
Avlin Tofler já tinha pré-anunciado: a revolução da informação, coligada com os media, com o audiovisual, e nos últimos anos com o universo e exército da internet, iam pôr tudo e todos à prova.
"Estamos doentes de abundância"
Hélia Correia
Escritora, Prémio Camões
O mundo está cada vez mais pequeno, mas com mais população, mais
desigual, desestruturado, e parece viver em modo de rua. Ou seja,
assistimos em direto, horas seguidas, a guerras, catástrofes,
manifestações, etc.
Já nos habituámos à ideia de que é o ‘novo normal’: a nova democracia
direta onde o povo na rua, com cada vez maior ruído e destruição, faz
tremer as instituições públicas de base nacional e até supranacional.
Passando por cima das aristocracias políticas, das suas instituições e
das suas ordens jurídicas instituídas.
Por tudo e quase por nada (reconheça-se) a rua, o protesto, a
manifestação, a destruição de bens (sobretudo privados...) faz-nos
sentir que a radicalização da democracia direta, via media e redes
sociais, está a mobilizar os melhores e os piores afetos do povo, dos
cidadãos. E, note-se, a fazê-lo melhor do que a democracia demoliberal,
com todo o seu rito político-jurídico e as suas ordens políticas e
institucionais. A democracia do like e do deslike, a democracia das fake
news, do ruído, da arte de melhor conflituar e protestar, é bem visível
e audível em várias geografias do mundo: Hong Kong, Bolívia, Chile,
Espanha, Inglaterra, etc., etc.
Avlin Tofler já tinha pré-anunciado: a revolução da informação,
coligada com os media, com o audiovisual, e nos últimos anos com o
universo e exército da internet, iam pôr tudo e todos à prova.
O fenómeno político é hoje muito mais esventrado por várias ciências
sociais. O pensamento estruturado e mais profundo da política tem muitas
dificuldades em filtrar as causas, as consequências e os efeitos nas
sociedades contemporâneas -- que se querem plurais, inclusivas e
consensuais. A ciência política, a sociologia, o direito, a economia,
nem sempre conseguem acomodar muitos dos seus efeitos.
A problemática está para dar e vender. Entre discussões conceptuais
do que é hoje a democracia liberal e a democracia iliberal, entre o que
une e separa as democracias de produção e as democracias de
distribuição, não faltam vozes a clamar mudanças e a partilhar
preocupações. Chantal Mouffe tem-nos apresentado aquilo a que designa
por ‘política agnóstica’, onde chama a atenção para a importância de
quem hoje mobiliza melhor os afetos do povo. Recordando que democracia
sem povo não é democracia. Aliás, a etimologia da palavra democracia é
clara: demos + kratos (soberania do povo). Pia Mancini fala-nos do tempo
da democracia tecnológica. Onde a política em rede se alterou e altera
todos os dias. Clama mudanças nas aristocracias políticas que só falam
cada vez mais para si e para as suas coisas.
Não faltam cultores de várias ciências sociais que também nos vão
alertando para aquilo a que chamam o ‘regresso à política da arte do
conflito’, por ausência de condições (nuns casos) e vontade (noutros
casos) para um dos elementos mais estruturantes das democracias liberais
- o consenso.
Parece simples? Parece. Mas a parte da sociedade que não
gosta do silêncio, do recato, da intimidade, da discrição e de valores
de vida que considera ultrapassados, tem perdido e muito com o extremar
de posições e com a vontade férrea de tudo pôr em causa, de quase viver
em modo de desconfiança obsessiva.
A pretexto dos mitos da transparência, da integridade, da liberdade
sexual, da liberdade e iniciativa económica, da regulação e pós
regulação, hoje quem não vai no cortejo do politicamente correto destas
ladainhas está a mais e é quase obrigado a ser abatido. Ou até
ridicularizado.
O certo é que, como bem diz Hélia Correia, escritora e vencedora do
Prémio Camões, a sociedade, sobretudo ocidental, vive "doente de
abundância". É uma afirmação dura de se ouvir? É. Mas é algo que pouca
gente assume. A decadência do Ocidente resulta em boa parte da obsessão
pelo consumismo e materialismo. Parecemos uma sociedade de adolescentes
com cabelos brancos, obcecados com vários tipos de abundância,
distraídos com isso das grandes desigualdades não só económicas e
sociais, mas também culturais.
Há mais de dez anos estive com outros portugueses de várias
profissões, idades, orientações políticas e religiões, muitos dias na
Índia.
Eu e outro português levámos um sermão de um alto dirigente do
Partido Comunista da Índia por chamarmos a atenção para as desigualdades
que se viam nas ruas e becos de várias cidades, com muita gente
descalça e a dormir na rua. Ele, comunista, formado na Europa,
disse-nos: "Estamos a fazer um grande esforço para atacar a pobreza. Não
fazemos é o que vocês têm feito, que é serem felizes e não saberem". E
depois fez outras afirmações do género: "Vocês estão viciados em
abundância e não o percebem. Têm subsídios para tudo e para nada. Já
gastaram o que ainda não produziram por três gerações. E ainda se
questionam e inventam coisas como o Dia do Cão, dos Avós, de tudo e mais
alguma coisa". Ouvimos. Reagimos. Mas de pouco serviu.
Também por isso, o regresso da política como ‘arte do conflito’ deve
implicar bom senso, consenso e respeito pelas instituições. Porque está
mais do que provado que quase nunca quem conflitua e espalha o caos é
melhor a gerir a coisa pública do que as aristocracias políticas. Mesmo
que não sejam perfeitas e tenham algumas falhas.
IN "SOL"
24/11/19
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