.
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
13/09/19
.
A tensão inescrutável
da democracia
O que ameaça hoje a ideia de democracia e da sua prática? A vontade de transparência que atravessa todas as relações no espaço público, limpas de tensão. Sem tensão democrática, a democracia torna-se encenação, reino do faz de conta, menos apreciável, descartável e, por isso, mais vulnerável.
Daqui a menos de um mês, voltamos às eleições legislativas. Quatro
anos de uma solução governativa frágil — com um governo de partido
minoritário, que não ganhou as eleições, apoiado por partidos de
esquerda radical — demonstraram que a democracia portuguesa sabe sair
das rotinas de distribuição de poder, sair da caixa. Sem que
verdadeiramente se justificassem desafios de legitimidade, para além dos
arrufos incrédulos de quem se viu afastado do poder. Se não tivesse
feito esta demonstração de vitalidade, estaria provavelmente agora a
debater-se, como acontece por toda a Europa, com nacionalistas xenófobos
desejosos de fazer da força e da exclusão o futuro sombrio dos seus
países. E para isto contribuíram os partidos políticos, mesmo os de
oposição.
Quanto mais a democracia conservar esta capacidade de
viver, exprimir e ir resolvendo tensões, mais imune estará às ameaças.
Por exemplo, uma greve com graves impactos protagonizada por um
sindicato pouco enquadrado, a testar a paciência do país, mas de tensão
genuína, muito ao contrário do que escreveu Boaventura de Sousa Santos,
faz mais pela credibilidade da democracia, ao pôr à prova as suas
capacidades, do que pelos movimentos antidemocráticos.
Descredibilizá-la, suspeitar das suas motivações, sugerir a sua exclusão
pode surtir inadvertidamente o efeito contrário. Sem tensão
democrática, a democracia torna-se encenação, reino do faz de conta,
menos apreciável, descartável e, por isso, mais vulnerável.
Com
hesitações e passos em falso, sem ciência certa, os quatro anos que
levámos foram de boa democracia também porque neles houve tensão
democrática. Em virtude da solução governativa, que não pôde evitar, e
bem, tensões diversas entre PS, BE e PCP, mas também de um governo que
soube ter elasticidade para sobreviver, uma sobre a outra, às tensões
que deixou viver.
Assim se justifica a impressão de oásis
democrático em Portugal, depois dos anos de chumbo austeritários, e
apesar da paisagem europeia e global em volta cada vez mais desoladora.
Mas nem por isso faltam problemas. Precisamente os globais, que só
atrevimento soberbo e inconsciente não leva a sério.
Há um recuo
democrático global. Há cada vez mais democracias iliberais, que
dificilmente são boas democracias. O neologismo “democratura” é bem
achado por evitar eufemismos. Por exemplo, o Brasil de Bolsonaro, apesar
das eleições, é hoje uma democracia ou uma democratura?
Mas o que
ameaça hoje a ideia de democracia e da sua prática? A hipótese deste
texto é simples: desde há décadas, impera uma vontade de transparência
que atravessa obsessiva, da escala local à global, todas as relações no
espaço público. E isto porque todas as relações passaram a ser pensadas
como relações de troca de valores, que devem ser transparentes, limpas
de tensão. Só que a democracia requer algum nível de inescrutabilidade
que está hoje cada vez mais em causa.
Alguns sinais podem ser apontados para suportar esta interpretação.
1. O
princípio “um homem, um voto” implica que cada voto tem exatamente o
mesmo peso que outro e que o seu valor é independente de uma
justificação. Dá-la permanece na esfera do possível e não da obrigação
ou do dever. O voto é um lugar de opacidade e isso é cada vez menos
tolerado. O modelo é dado pelas redes sociais, que compelem à tomada de
posição e à opinião instantâneas, sem intervalo que não caia de
imediato na suspeita que tudo corrói.
As exigências crescentes de
total transparência põem em causa a opacidade nuclear que a democracia
reconhecia e garantia aos seus participantes na forma de um pressuposto
formal fundador de igualdade.
2. A
questão que se omite quando se valoriza de modo acrítico a
transparência é a de saber se não preferiríamos a confiança à
transparência. Afinal, não deveria a transparência constituir apenas um
meio para a confiança? Como, então, pôde constituir-se como um fim que
suplanta e substitui a confiança relacional entre os membros de uma
comunidade?
Aliás, a metáfora da transparência pressupõe que no
lugar do campo aberto que permita vistas largas se construam muros de
vidro transparentes, tantos quantas as exigências de transparência. O
campo da transparência assegura a mesma visibilidade que o campo aberto,
mas, paradoxalmente, compartimentando-o, emparedando-o e, dessa
maneira, controlando os movimentos do portador do olhar, na verdade ele
mesmo, enquanto sujeito de olhar, tornado objecto de outro olhar. O
regime da transparência não é pois nem o regime da livre visibilidade,
nem da livre invisibilidade que poderíamos fazer coincidir com o direito
à opacidade, mas o regime de uma contra-visibilidade ela mesma
necessariamente sob pouco ou nenhum controlo.
Toda esta estrutura
de compartimentação, tão mais densa e complexa quanto mais se exigir
transparência, é, no entanto, eficiente apenas na medida em que ela
mesma é invisível. Ela apenas consegue contra-ver perfeitamente se nela
nada se deixar ver. Instaura-se assim um regime de controlo, de que os
sujeitos em geral só alcançam uma percepção pela projecção de poder de
ver que está ao alcance do dispositivo da transparência. O resultado
pouco surpreendente é o negócio dos big data, das ‘Cambridge Analyticas’ e boa parte da indústria dotcom.
3. Um
terceiro sinal reside na tendência a incorporar na democracia elementos
de governança com base no argumento da complexidade da governação —
tendência que certamente afecta o equilíbrio entre poderes parlamentares
e poderes executivos, favorecendo estes últimos, mas que, mais
profundamente, questiona o próprio estatuto do governante como
representante político. É clarificador, como aconteceu no quadro de
aplicação de medidas políticas impopulares e controversas, que quem
governa não se reconheça como representante político e veja nisso uma
condição mais livre e, portanto, mais séria e transparente, para o
exercício da sua função governativa. Como se ser representante fosse já
uma concessão a uma governação menos conseguida.
4. Por
fim, todas estas tendências atingem a própria noção de representação
política. Por um lado, vinga a ideia de que cada um se representa a si
mesmo, por outro, duvida-se que uma pluralidade se possa considerar
representada. Não há representação sem confiança e não há confiança sem a
admissão de alguma opacidade inescrutável. Haver razões para confiar, e
que podem ser enunciadas transparentemente, não põe em causa a condição
de que a confiança é, na verdade, o que subsiste para lá de todas as
razões para confiar, como um substrato relacional, de convivialidade. Se
a confiança em pessoas ou instituições não pudesse exceder o conjunto
das razões para nelas confiar, estaríamos a secundar uma concepção
desconfiada da confiança e, mais profundamente, uma concepção
arrelacional da confiança.
Este é um sintoma inseparável do quadro
mais amplo de tendências que extremam o programa moderno de tudo tornar
literal, às claras, sem ambivalências que dificultem a operação da
equivalência, da troca de valores por outros valores.
Há qualquer
coisa de muito contraditório entre a democracia e os tempos que vivemos e
que pode ser posta nos termos de uma oposição entre qualidade e
quantidade. Uma democracia de qualidade tem de ser uma democracia de
diferenças qualitativas, posições que não se deixam comensurar por
graus, curvas de utilidade, etc. Quando se fala em medir a qualidade da
democracia pode facilmente entrar-se em contradição performativa. Sem
prejuízo dos méritos da medida transparente, corre neles implícita uma
inclinação debilitante da democracia. Ou no mínimo o risco disso. A
democracia da representação, da igualdade, do convívio das oposições não
é um regime de troca de valores quantificáveis.
Estas
perspectivas convergem com duas linhas de pensamento da teoria política
que já vêm do final do século passado. Dentro da tradição da teoria
crítica alemã, Axel Honneth põe em causa o procedimentalismo das
concepções deliberativas da democracia, concedendo maior relevo ao
“reconhecimento”, categoria que recupera dimensões de opacidade nas
lutas sociais. Em “Luta pelo Reconhecimento — para uma Gramática Moral
dos Conflitos Sociais” (1992), sustenta a inevitabilidade de uma
dimensão conflitual na compreensão do relacionamento intersubjectivo,
irredutível às perspectivas de consenso deliberativo e às de uma luta de
interesses subsumível a uma lógica de cálculo de preferências.
A
luta por reconhecimento pressupõe dimensões identitárias colectivas como
quadro de referência para o que possa ser reconhecível, e que se
mobilizam historicamente a partir de uma percepção de falta de
reconhecimento no quadro da sociedade e da sua organização.
Uma
segunda linha de pensamento promovida, entre outros, por Chantal Mouffe,
estabelece a sua crítica ao estado da democracia nos termos de uma
falta de radicalidade. Em “O Regresso do Político” (1993), Mouffe
sustenta uma democracia radical como forma de fazer regressar o
político, sem perda de uma matriz liberal e de um pluralismo
confrontacional. Nas suas palavras:
“Um projeto de democracia
radical e plural tem de conciliar-se com a dimensão de conflito e
antagonismo da política e tem de aceitar as consequências da irredutível
pluralidade de valores. Deve ser este o ponto de partida da nossa
tentativa de radicalizar o regime democrático-liberal e de alargar a
revolução democrática a um número crescente de relações sociais. Em vez
de fugir da componente de violência e hostilidade inerente às relações
sociais, a tarefa consiste em pensar em como criar as condições nas
quais essas forças agressivas podem ser diluídas e canalizadas, de forma
a tornar possível uma ordem democrática pluralista.”
Em suma,
devolver a tensão inescrutável às nossas democracias é o caminho. Mas
não é um caminho fácil dada a crise da relacionalidade no espaço público
de hoje. Eliminam-se relações por serem opacas, impermeáveis à lógica
da troca de valores por valores. Desconfia-se das que sobrem. É uma
suspeita que, no seu cerne, nos levanta um problema antropológico. O
sujeito humano que não se permite nenhuma opacidade para consigo próprio
e para com os outros não pode confiar nem em si próprio nem em ninguém.
* Filósofo, Professor da Universidade da Beira Interior
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
13/09/19
.
Sem comentários:
Enviar um comentário