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Com o cadáver da esperança
Por mais arrogante que se seja e se padeça do complexo da omnipotência, ninguém, a não ser que pense suicidar-se antes, pode dizer: Até amanhã, se eu quiser. Dada a constituição corpórea do ser humano e a sua consciência antecipadora, toda a pessoa adulta e consciente, que reflecte, sabe, embora com um saber paradoxal, pois ninguém se pode conceber a si mesmo morto, que é mortal e que a morte é o limite inultrapassável. Ninguém rouba a morte a ninguém, cada um morrerá na sua vez. E as sabedorias ancestrais e as religiões e as filosofias lembraram sempre a cada um: "lembra-te de que és mortal"; aos generais romanos vitoriosos, na corrida para a celebração do triunfo, havia um escravo que lhes ia sussurrando ao ouvido o dito, em latim: "memento mori" (lembra-te de que és mortal); "sic transit gloria mundi" (assim passa a glória mundana): lembrava ao Papa na sua coroação o mestre-de-cerimónias enquanto queimava uma mecha de estopa; os gregos definiam os humanos frente aos deuses, imortais, como "os mortais".
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
03/11/18
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às costas
Ainda sobre os dias 1 e 2 de Novembro:
Dois dias para a morte e o sentido
Por mais arrogante que se seja e se padeça do complexo da omnipotência, ninguém, a não ser que pense suicidar-se antes, pode dizer: Até amanhã, se eu quiser. Dada a constituição corpórea do ser humano e a sua consciência antecipadora, toda a pessoa adulta e consciente, que reflecte, sabe, embora com um saber paradoxal, pois ninguém se pode conceber a si mesmo morto, que é mortal e que a morte é o limite inultrapassável. Ninguém rouba a morte a ninguém, cada um morrerá na sua vez. E as sabedorias ancestrais e as religiões e as filosofias lembraram sempre a cada um: "lembra-te de que és mortal"; aos generais romanos vitoriosos, na corrida para a celebração do triunfo, havia um escravo que lhes ia sussurrando ao ouvido o dito, em latim: "memento mori" (lembra-te de que és mortal); "sic transit gloria mundi" (assim passa a glória mundana): lembrava ao Papa na sua coroação o mestre-de-cerimónias enquanto queimava uma mecha de estopa; os gregos definiam os humanos frente aos deuses, imortais, como "os mortais".
A
consciência da morte caracteriza o ser humano e, confrontando-o com a
ameaça do nada - aquele "nunca-mais-para-sempre" neste mundo, escreveu
Vladimir Jankélévitch -, revela-o a si mesmo na sua fundura
ético-metafísica. Aí, sabe que é um eu, único, enfrentando perguntas de
abismo sem fundo, inevitáveis: O que sou e quem sou? O que quero e devo
fazer?
Na consciência antecipadora da morte, cada um é dado a si
mesmo como totalidade, ainda que incompleta, pois ninguém sabe o que é
morrer nem o que quer dizer exactamente estar morto. De qualquer modo,
nessa antecipação, a pergunta decisiva é: qual o sentido da vida, da
existência, da história, de tudo? Vamos realizando sentidos, mas,
perante a morte, impõe-se a pergunta essencial, final: qual o sentido de
todos os sentidos, o sentido último? Para quê? Porque, se tudo se
afunda na morte: bem, mal, dignidade, indignidade, justiça, injustiça...
então tudo é equivalente, vale tudo o mesmo e foi tudo para nada.
Mas
é tão natural o homem saber da sua morte como esperar para lá dela. A
pessoa é constitutivamente esperante, assim: por mais que concretize e
realize da sua esperança, ela nunca está plena e adequadamente
concretizada nem realizada, pois há sempre um abismo entre o desejado e o
alcançado, e, por isso, sempre um mais além, de tal modo que nenhum
homem, nenhuma mulher morre satisfeito, satisfeita (de satis-factus, satis-facta:
feito, feita suficientemente). Todos morrem em aberto, o que leva à
conclusão de que a realização plena só pode vir de Outro, de Deus; só a
religião pode garantir a esperança total. Assim, a própria Escola de
Frankfurt vivia atenazada. Por exemplo, Max Horkheimer, um dos seus
fundadores, por um lado, não acreditava, mas, por outro, ansiava pelo
totalmente Outro: "Sem Deus, é inútil pretender salvar um sentido
incondicional. (...) A morte de Deus é também a morte da verdade
eterna." "O anelo pelo totalmente Outro é um anelo que une os homens, de
tal modo que os factos atrozes, as injustiças da história passada não
sejam o destino último, definitivo, das vítimas." Por isso, pensava que a
moral assenta em última instância na teologia, significando teologia "a
consciência de que este mundo é um fenómeno, que não é a verdade
absoluta, que não é a ultimidade. Teologia é - exprimo-me
conscientemente com grande cautela - a esperança de que a injustiça que
atravessa o mundo não seja a ultimidade, que não tenha a última palavra
(...) expressão de um anelo de que o verdugo não triunfe sobre a vítima
inocente". Theodor Adorno, outro fundador, escreveu que "o pensamento
que se não decapita desemboca na transcendência; a sua meta seria a
ideia de uma constituição do mundo na qual não só ficasse erradicado o
sofrimento existente, mas também revogado o irrevogavelmente passado".
Também Jürgen Habermas se refere a toda esta problemática, concretamente
a das vítimas inocentes e da dívida da história para com elas, trazendo
à colação este texto de J. Glebe-Möller: "Se desejarmos manter a
solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, então temos de
reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e do agora e que possa
vincular-nos a nós também para lá da nossa morte com aqueles que,
apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a esta
realidade a tradição cristã chama-a Deus."
Claro que ninguém se
pode gloriar, diz I. Kant, de saber que Deus existe e que haverá uma
vida futura: se alguém o souber, escreveu, "esse é o homem que há muito
procuro, porque todo o saber é comunicável e eu poderia participar
nele". Mas é razoável acreditar em Deus e esperar para lá da morte. Na
sua obra Was ich glaube (O Que Eu Creio), resultado de uma
série de lições, aos 80 anos, na Universidade de Tubinga, a cada uma das
quais assistiram mil pessoas, pergunta, com razão, o célebre teólogo
Hans Küng: "O ateísmo explica melhor o mundo? A sua grandeza e a sua
miséria? Como se também a razão descrente não encontrasse o seu limite no sofrimento inocente, incompreensível, sem sentido!"
A
curto, a médio, a longo prazo todos iremos estando mortos. A nossa vida
e a realidade do mundo estão em processo e a história lê-se do fim para
o princípio. Só no fim se poderá saber, mas, sem Deus, nunca poderíamos
sequer saber quem somos nem o que pretendia a realidade e a história,
porque não estaríamos lá e tudo teria sido para nada. Lá, no final, só
há, portanto, uma alternativa.
Claude Lévi-Strauss conclui assim o seu L'Homme Nu:
"Ao homem incumbe viver e lutar, pensar e crer, sobretudo conservar a
coragem, sem que nunca o abandone a certeza adversa de que outrora não
estava presente e que não estará sempre presente sobre a Terra e que,
com o seu desaparecimento inelutável da superfície de um planeta também
ele votado à morte, os seus trabalhos, os seus sofrimentos, as suas
alegrias, as suas esperanças e as suas obras se tornarão como se não
tivessem existido, não havendo já nenhuma consciência para preservar ao
menos a lembrança desses movimentos efémeros, excepto, através de alguns
traços rapidamente apagados de um mundo de rosto impassível, a
constatação anulada de que existiram, isto é, nada."
A Bíblia, no seu último livro, Apocalipse,
que quer dizer revelação, conclui assim: "Vi então um novo céu e uma
nova terra. E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova
Jerusalém. E ouvi uma voz potente que vinha do trono: 'Esta é a morada
de Deus entre os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e o
próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas as
lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto,
nem dor. Porque as primeiras coisas passaram.'"
É preciso
relembrar esta alternativa final, concretamente neste tempo de
inesperança em que, ao contrário de todas as aparências de euforia, se
avança, citando um poeta galego, "com o cadáver da esperança às costas".
Aqui
chegados, alguém poderá objectar que a esperança no Além é alienante,
porque retira força ao compromisso com a luta por um mundo mais humano
no aquém. Mas, se se pensar mais fundo, é o contrário. A inesperança
está a infectar a vida, porque se ama pouco. O amor autêntico quer
eternidade e é o combate comprometido com um mundo mais justo, mais
humano e mais feliz que reforça a esperança no Além. Como disse Immanuel
Kant de forma lapidar: "A praxis tem de ser tal que se não possa pensar que não existe um Além."
* Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
03/11/18
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