Ainda as terapias alternativas:
um cachimbo é um cachimbo
Cada um tem direito a acreditar no que quiser, inclusivamente em estranhos poderes da mente, não pode é chamar ciência ao que não o é.
Na sequência do nosso artigo “Terapias alternativas: quando as portarias substituem as provas”, surgiu uma resposta
de Leonor Nazaré (LN), curadora de arte contemporânea. Nós defendemos
que as terapias alternativas, ao contrário do que dizem os seus
prosélitos, não têm fundamento científico.
E que o Governo devia exigir
provas de eficácia e segurança de todos os tratamentos, em vez de
publicar legislação que define conteúdos programáticos de licenciaturas
em pseudociências, cujo fito é dar cédulas profissionais a praticantes
de terapias fantasiosas. É o equivalente a criar licenciaturas em
dragonologia para conferir autentificação profissional a amestradores de dragões.
Um tal absurdo contribui para enganar os cidadãos, levando-os a crer
que certas práticas têm um fundamento científico que não têm. Se
prosseguir pela actual via, o poder político tornar-se-á cúmplice de uma
fraude.
O artigo de LN é um catálogo de clichês anti-ciência. A começar pelo
relativismo, ou seja, a ideia de que o conteúdo da ciência depende de
factores culturais, implicando que verdades incompatíveis oriundas de
diferentes culturas seriam igualmente válidas. Para os relativistas, a
concordância de cada convicção particular com as observações na Natureza
é irrelevante, pois ela deve sempre ser entendida e aceite no seu
contexto sociológico. Nessa visão não interessam as provas, não há
verdade nem mentira, tudo é relativo.
O matemático e filósofo Bertrand
Russell encontrou-se em 1911 com Ludwig Wittgenstein, um influente
filósofo do relativismo. Russell tentou que Wittgenstein concordasse com
a seguinte frase: “Não há, nesta sala, neste momento, um hipopótamo.”
Mas Wittgenstein recusou-se a concordar, mesmo depois de Russell ter
espreitado debaixo de todos os móveis. As leis da natureza são as mesmas
em todo o Universo e não dependem de quem as propõe, mas sim das provas
apresentadas em seu abono.
A divisa da Royal Society, a mais antiga
sociedade científica do mundo, ilustra bem o que é a ciência: nullius in verba,
que significa “A verdade não está na palavra do mestre”. É por não
aceitarem a palavra das autoridades que os cientistas observam e
experimentam. E é com base nesse seu trabalho que é possível fabricar
telemóveis, aviões e medicamentos.
LN evoca a física quântica, que
há mais de cem anos tem descrito o mundo à escala das moléculas, átomos
e partículas subatómicas. Junta-se assim a Deepak Chopra, Rupert
Sheldrake e outros gurus do movimento Nova Era (de Aquário, na lógica
astrológica) que usam algumas ideias da física quântica em metáforas nos
seus livros de auto-ajuda. LN acredita nessas autoridades.
Os
deturpadores da teoria quântica ignoram que, apesar de existirem
electrões nos seres vivos, a sua descrição não chega para explicar a
vida, cujos fenómenos decorrem noutra escala. Os princípios que regem um
electrão não se aplicam ao João! Os ditos gurus fazem extrapolações
abusivas, como a possibilidade de se criar realidade apenas com a nossa
consciência ou de curar o cancro com o poder da mente. No limite, se morrer de cancro a culpa é sua.
Nada disso é física quântica, é palavreado com um ar científico usado
sem qualquer significado. Cada um tem direito a acreditar no que quiser,
inclusivamente em estranhos poderes da mente, não pode é chamar ciência
ao que não o é.
LN saca, sem surpresa, de outro cliché anti-ciência: a quimiofobia.
Só que um produto natural é necessariamente um produto químico, e o
facto de uma substância existir na natureza não a torna necessariamente
segura. Basta pensar no ácido aristolóquico, presente em plantas
medicinais usadas há séculos na China, mas que causa insuficiência renal e cancro. Ou, reciprocamente, nos medicamentos sintéticos que todos os dias salvam inúmeras vidas.
Por
último, a ciência não é a única das dimensões humanas. O facto de
sermos cientistas não nos impede de apreciar a arte. Há pontes a
realçar, designadamente o facto de em ciência também existirem critérios
estéticos. Hermann Weyl, matemático que ajudou a desenvolver a teoria
quântica, afirmou: “O meu trabalho sempre tentou unir o verdadeiro e o
belo, mas quando tive de escolher entre um e o outro, escolhi
normalmente o belo.” Contudo, há uma diferença essencial entre ciência e
arte: a ciência descreve o mundo real de que somos parte, que é só um e
cujas leis não dependem da nossa vontade, ao passo que a arte pode
criar mundos, que são tantos quantas as obras de arte (Wassily
Kandinsky: “criar uma obra de arte é criar um mundo”). Em ciência um
cachimbo é um cachimbo, mas em arte não é necessariamente assim. É
errado aplicar o pensamento da curadoria da arte à epistemologia da
ciência.
*Cientistas e divulgadores científicos, autores do recente livro A Ciência e os seus Inimigos
IN "PÚBLICO"
06/03/18
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