Lisboa,
31 de Dezembro de 2020:
olhando para trás
No notável artigo “Looking backwards”, escrito na década de 90 do século passado, Paul Krugman colocava-se no final do século XXI, comentando o que imaginou serem os desenvolvimentos do século XX.
Ao ser convidado a escrever sobre as perspectivas para 2016, decidi
tentar um exercício semelhante, naturalmente mais modesto, colocando-me
no final do próximo quinquénio. Mais do que isso, imaginei duas
histórias bem diferentes, deixando a escolha ao leitor sobre a que
poderá vir a ser mais próxima da realidade.
Primeira história
Nos últimos cinco anos confirmaram-se os riscos de instabilidade dos mercados financeiros que se perspectivavam em 2015.
Na
prática, foi como se a crise financeira que se desencadeou
violentamente em 2007/2008 não tivesse conhecido solução e se tivesse
prolongado por quase 14 longos anos. Em 2015, enquanto Presidente da
CMVM (Comissão do Mercado de Valores Mobiliários), apresentei na
Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública um diagrama
intitulado “A tempestade perfeita?”, sobre o potencial de conjugação de
riscos criados sobretudo pelo prolongado período de taxas de juro muito
baixas e de criação de liquidez sem precedentes pelas políticas
monetárias. Esses riscos acabaram por se materializar fruto de vários
desenvolvimentos negativos e cumulativos. No final de 2015 eram já
evidentes os sinais de crise em economias que tinham sustentado o
crescimento e a estabilidade de preços na década anterior. Refiro-me em
particular aos designados BRIC (Brasil, Índia e China) e também outros
mercados emergentes, particularmente da América Latina, ameaçando quer o
crescimento económico, quer os preços dos activos reais e financeiros
dessas economias. O facto é que no quinquénio terminado em 2015, apesar
de uma estabilidade generalizada dos preços dos bens e serviços –
propiciada pelos aumentos de produtividade nas economias emergentes para
onde se deslocalizara parte da produção e por uma velocidade de
circulação da moeda historicamente baixa – a abundante oferta monetária
acabou por se reflectir num forte aumento dos preços dos activos reais.
Novas “bolhas” surgiram no imobiliário em economias que a elas tinham
escapado na génese da crise anterior e já repetidas noutras, mas também
nos activos financeiros, sobretudo nos mercados obrigacionistas em geral
e nos mercados accionistas, principalmente dos EUA e das economias
emergentes. A consciência destes riscos levou a Reserva Federal (FED) a
iniciar em finais de 2015 um percurso de subida das taxas de juro que
pretendia fosse muito gradual. Ao mesmo tempo, o BCE propunha-se
prolongar a política expansionista de compra de activos até Abril de
2017.
Acontece que 2016 viu agravar-se a crise económica e
financeira nos mercados emergentes, bem como as tensões políticas no
Médio Oriente, o que desencadeou a inversão do sentimento dos
investidores, ao mesmo tempo que se invertia a queda dos preços do
petróleo, que tinham baixado dos 40 dólares em 2015. O desinvestimento
em activos financeiros levou a um acumular de liquidez que conduziu ao
aumento das tensões inflacionistas e da instabilidade cambial. Tal
conduziu os bancos centrais ao abandono das políticas monetárias
expansionistas de quase uma década e a uma subida das taxas de juro mais
rápida. Em resultado, os preços das obrigações – públicas e privadas – e
das acções caíram fortemente, o mesmo acontecendo com o imobiliário.
Todas
estas circunstâncias levaram a um aumento do risco de crédito e a taxas
elevadas de incumprimento nas obrigações de ‘high yield’, que tinham
sido profusamente emitidas entre 2011 e 2015. Acontece que parte
significativa destes activos era detida pelos bancos centrais que, por
isso, registaram perdas elevadas em 2016 e 2017, criando assim mais
moeda e obrigando a novas operações de esterilização monetária. O
círculo vicioso que se gerou implicou um forte efeito de riqueza
negativo das famílias (conjugando depreciação de activos e cargas de
juros mais elevadas) e uma deterioração da situação das empresas, o que
levou à rápida degradação do seu risco de crédito e a consequentes
perdas do sector bancário. Em 2018, muitos foram os bancos que tiveram
de fechar, com perdas elevadas para investidores e aforradores, dada a
incapacidade de auxílio por parte dos Estados, na sua generalidade com
finanças públicas depauperadas. O período de deflação que se seguiu
levou a uma forte queda do rendimento mundial, tendo implicado um
completo reajustamento das políticas económicas e, finalmente, na
Conferência de Bretton Woods II, já em 2020, à construção de um novo
modelo de governação económica mundial, integrando as vertentes das
políticas fiscais, monetárias, financeiras e de comércio externo (aqui
passando a incluir dimensões ambientais, sociais e laborais outrora não
consideradas). 2021 deverá ser, assim, o primeiro ano de funcionamento
pleno do novo modelo, esperando-se que ele conduza finalmente à
estabilização das economias e dos mercados financeiros.
Segunda história
Apesar dos riscos que em 2015 se
acumulavam e que eram assinalados por organizações internacionais como a
IOSCO ou o próprio FMI, foi possível mitigá-los gradualmente ao longo
de 2016 e 2017, através de uma actuação articulada dos principais bancos
centrais, dos supervisores prudenciais e dos reguladores dos mercados
financeiros. A subida gradual das taxas de juro, a par de uma redução
progressiva da liquidez injectada pelos bancos centrais e de regras
prudenciais mais estritas, quer na banca quer noutras instituições
financeiras, permitiram uma clara redução dos riscos nos sistemas
financeiros. A supervisão das agências de ‘rating’ levou a uma avaliação
muito mais rigorosa dos riscos de crédito que levou os investidores a
ajustar progressivamente as suas carteiras. Os elevados níveis de dívida
pública e privada que se verificavam em 2015 e a perspectiva de subida
das taxas de juro levaram os Estados e as empresas a uma gestão mais
rigorosa das suas finanças. Desse modo, teve finalmente início um
efectivo processo de desalavancagem. Em consequência, o crescimento
económico mundial em 2016 e 2017 foi muito modesto, com alguns casos de
recessão moderada. A própria China aderiu a este movimento articulado de
desalavancagem, não deixando todavia de sofrer correcções
significativas dos preços dos activos financeiros e reais, mas criando
uma base mais saudável para um crescimento sustentado. Os anos de 2019 e
2020 foram já anos de crescimento moderado mas generalizado, com níveis
de inflação baixos e com os sistemas financeiros finalmente
estabilizados. Os bancos foram-se tornando progressivamente mais
pequenos e mais simples, voltando à tradicional especialização em banca
comercial e de investimento, ao mesmo tempo que o sector não bancário se
tornou um concorrente eficaz na captação de depósitos e no
financiamento das economias. Fruto da forte ênfase colocada pelos
supervisores europeus na protecção dos investidores, os produtos
financeiros transaccionados nos mercados tornaram-se mais simples e
transparentes. Ao contrário do que se antevia nos anos que precederam
2015, algumas inovações tecnológicas como a negociação algorítmica e de
alta frequência acabaram por não ter grande sucesso, após terem ocorrido
alguns acidentes em diversos mercados em 2016 e 2017, que só não
tiveram consequências mais gravosas em virtude da decidida intervenção
dos supervisores então já bem equipados para a supervisão daquele tipo
de negociação. Na Europa, está em preparação a DMIF III, depois de se
concluir que a segurança dos mercados e a protecção dos investidores
exigem mais do que o que é proporcionado pela DMIF II, que entrou em
vigor há apenas três anos.
Recordando um programa de televisão de há alguns anos, resta dizer ao leitor: agora escolha!
Infelizmente,
o leitor só pode escolher qual a narrativa que acha mais provável e, ao
contrário do programa de televisão, não pode determinar o resultado
final. Todavia, há quem possa e tenha a obrigação de tudo fazer para que
daqui a cinco anos se possa contar uma história mais próxima da
segunda.
IN "DIÁRIO ECONÓMICO"
30/12/15
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