O escritor fantasma
Uma última
viagem na sua permanente vocação para agitar consciências, diz o anúncio
da Porto Editora. Um acto revolucionário, diz o juiz espanhol Baltasar
Garzón. Saramago vintage, diz o editor brasileiro do falecido escritor.
Saramago no seu melhor, diz o editor português. Uma obra divertida, diz
Eduardo Lourenço.
Tudo isto a propósito de "Alabardas, Alabardas,
Espingardas, Espingardas", o dito romance inacabado de José Saramago. Na
verdade, de romances inacabados está o mundo cheio. Alabardas inaugura
um género novo, o dos romances praticamente por começar.
Não é
que não haja um livro: há, aliás com 135 páginas. Seis são notas do
autor. Cinquenta são textos de outros autores sobre o autor e o produto
em causa. Dez são índices, ficha técnica e diversos. Doze são desenhos
de um antigo membro das Waffen-SS. Sobram 57 folhinhas, impressas em
fonte crescida e a dois (ou três) espaços. Ninguém se deve admirar se,
no mês que vem, publicarem os últimos post-it que Saramago colou no
frigorífico, em cinco volumes repletos de ensaios alheios, bonecos para
colorir e a oferta de uma echarpe em tons marrom. Meia dúzia de críticos
hão-de considerar estarmos perante um momento de ruptura na cultura
universal.
Num certo sentido, Alabardas consagra de facto o
estilo do Nobel caseiro, que em vida fazia questão de anunciar, ele
próprio, o carácter polémico de cada livro antes mesmo de o livro chegar
ao público. Um boa estratégia, até porque quando o livro chegava ao
público não acontecia nada de especial - excepto se o público se chamava
Sousa Lara. Devido a condicionantes óbvias, agora o anúncio da polémica
ficou a cargo de terceiros, mas o processo é idêntico e com uma
vantagem: se o hábito consiste em privilegiar a algazarra em detrimento
do conteúdo, desta vez o conteúdo quase não existe e a algazarra abunda.
Saramago vintage, de facto. E, desde que ignoremos os pechisbeques
anexos, a minha obra preferida dele. As outras não se liam em horas.
Conto não ler esta em vinte minutos.
Domingo, 5 de Outubro
As fitas que as elites fazem
Deixem-me
citar António-Pedro Vasconcelos (APV), em entrevista ao DN a pretexto
do seu recente filme: "(...) Isso levou-me a pensar muito no Frank Capra
e no Vittorio De Sica, que fizeram filmes em momentos de crises
terríveis, mas sem deitar as pessoas abaixo. A questão é que o Capra
tinha o Roosevelt e nós temos o Cavaco. É um bocado diferente. O
neorrealismo partiu de coisas atrozes como a guerra e o fascismo, mas
havia um horizonte de esperança."
Passemos ao ponto da situação.
Para APV, APV é um cineasta comparável a Capra e a De Sica. Roosevelt
suscitava admiração. O fascismo permitia, ou até estimulava, o
optimismo. A Depressão e a II Guerra eram preferíveis à austeridade da
troika. E o Prof. Cavaco é o mais reles dos estadistas, tão mau que
embora presida ao regime que subsidia as pérolas de APV, indirectamente
impede um génio do calibre de APV de fazer o tipo de fitas que os seus
heróis fizeram.
Porém, APV faz outras fitas. Entre elas, apoia
António Costa. E não se trata de um apoio casual: APV foi a acções de
campanha do homem, apareceu excitadíssimo na noite da vitória nas
primárias, atribui-lhe virtudes como a "paixão", o "rigor" e a
"seriedade".
Ora aqui é que a coisa se complica. Ninguém
estranhará que APV, vulto da Cultura com maiúscula, despreze o Prof.
Cavaco, subido dos Algarves e da classe média rural. Já é esquisito que o
seu elevado grau de exigência se satisfaça com o Dr. Costa, o portento
que geriu bastante melhor a carreira política do que uma mera autarquia.
Em larga medida, é o mesmo que escarnecer de José Cid para louvar os
méritos do cançonetista Toy. Mas é justamente essa a especialidade das
nossas elites, que APV representa na perfeição. E se as elites traduzem
um país, pobre país.
Quarta-feira, 8 de Outubro
Os direitos do indivíduo
Marinho
e Pinto prometera um striptease do salário e fê-lo em meros 17 dias,
pelo que demorou apenas um pouco mais que o striptease literal da
dançarina exótica média. Infelizmente (ou felizmente, que aqui a
doutrina divide-se), ficou uma peça de roupa por tirar, ou por declarar
ao TC: os 54 mil euros que Marinho e Pinto recebeu da Ordem dos
Advogados a título de subsídio de "reinserção na actividade
profissional". "É vida privada", explicou o homem que veio purificar a
política.
E "privada" é favor. O tal subsídio foi criado em 2008
pelo então bastonário da Ordem, por coincidência Marinho e Pinto. "Tudo o
que fiz foi de acordo com a lei e com as regras estabelecidas", afirma o
justiceiro, sem falsos pudores perante o facto de a lei e as regras
serem da autoria dele ou de confrades dele. Ao mesmo tempo, e talvez sem
dar por ela, Marinho e Pinto estabelece uma mudança radical na relação
dos contribuintes com o fisco. Se o precedente vingar, a partir de agora
é o cidadão que decide qual a parte dos rendimentos susceptível de
impostos e qual a parte isenta. Nunca antes se defendeu tão bem os
direitos do indivíduo, o indivíduo Marinho e Pinto, claro.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
12/10/14
.
Sem comentários:
Enviar um comentário