Ensaio de
António Barreto sobre a reforma do Estado
Por que razão a reforma do Estado é, em Portugal, necessária há várias décadas?
O crescimento do Estado de protecção social foi muito acelerado
depois de 1974 e fez aumentar a dimensão, o volume, a força, a decisão e
o peso do Estado e da administração pública. Mesmo depois da
reprivatização da economia e das empresas, iniciada nos anos 90 e
prosseguida até hoje pelos dois maiores partidos, as dimensões do Estado
administrativo não foram reduzidas.
Dos menos de 200 mil funcionários
dos anos 60, chegámos aos 600 mil a 700 mil da última década. Esta
dimensão não é necessariamente exagerada, quando comparada com a dos
nossos parceiros europeus.
Acontece que se tratou de um crescimento
orgânico e demográfico, sem alteração consistente das formas de
organização e das missões do Estado, tanto central como local. Por outro
lado, a comparação com outros países desenvolvidos pode ser falaciosa.
Na verdade, a semelhança de números esconde diferenças radicais no
produto nacional, na organização e na produtividade.
A Constituição e as principais leis de base não criaram um Estado
administrativo com novo espírito e critério, nem estabeleceram um novo
modelo de organização. Algumas das grandes polémicas, controvérsias ou
dilemas foram sempre sendo adiados: o centro versus região e o Estado central versus
autarquia nunca encontraram verdadeiramente solução ou o regime de
acumulação de funções públicas e privadas dos agentes da administração.
A verdade é que não é possível encetar com êxito um processo de
reforma do Estado sem começar ou passar pela revisão da Constituição. O
que torna tudo mais difícil. A Constituição e as leis de bases traçaram
minuciosamente um sistema de defesas contra o autoritarismo, o
caciquismo, o cesarismo, os vulgarmente chamados regimes fascistas e
comunistas, o populismo de cariz militar e outros?
A natureza equívoca e
ambígua do sistema semipresidencial é o melhor retrato desse
sofisticado sistema de defesa, brilhante na construção, uma verdadeira
obra-prima, mas que é fraco de carácter e defensivo na energia. Algumas
das querelas antigas e que hoje são de novo virulentas, como entre os
órgãos de soberania (entre o parlamento, o Presidente da República e o
governo), ou entre os órgãos de soberania e os tribunais (com relevo
para o Tribunal Constitucional), são o resultado directo e permanente da
natureza híbrida do regime, do sistema constitucional e da natureza do
Estado.
Toda a construção ou todo o desenvolvimento do Estado, desde os anos
70, foram feitos nas circunstâncias acima descritas, com especial relevo
para uma instituição: os partidos políticos. O fio condutor, os
obreiros e os protagonistas do desenvolvimento do Estado e da
administração pública, desde 1974, foram os partidos políticos. Foram
subalternizadas outras instituições e entidades, como sejam o
parlamento, o Presidente da República, o governo, as regiões, as
autarquias, os tribunais, as forças armadas, as empresas privadas, as
universidades e outras.
A sociedade e a economia mudaram profundamente durante as últimas
quatro a cinco décadas. A demografia alterou-se e o panorama
populacional do país modificou-se drasticamente. A administração
autárquica, local e regional, foi concebida para um país e uma sociedade
que já não existem. As grandes metrópoles urbanas estão cada vez mais
complexas e quase ingovernáveis, enquanto o Interior despovoado continua
a ser regido por sistemas desadequados. Mudaram as actividades,
modificaram-se as empresas, deslocaram-se as pessoas, transformaram-se
os recursos, alteraram-se drasticamente as vias de comunicação? mas as
estruturas administrativas mantiveram-se quase inalteradas.
Não é a melhor altura. O actual período de crise financeira do Estado
(e da sociedade) não é a melhor altura para proceder à reforma do
Estado. Aliás, a correcção conjuntural das finanças do Estado, apesar de
indispensável, não pode ser confundida com a reforma estrutural do
Estado. Esta pode e deve ser preparada, debatida e reflectida, mas
qualquer urgência é sinal de fraqueza e de dependência.
Em momentos de
expansão económica e de estabilidade social e política, as querelas
constitucionais esbatem-se e as deformações do Estado são aparentemente
ultrapassadas pela euforia económica e social. Mas, em momentos de
crise, as deficiências constitucionais avultam com carácter de urgência.
Quando a crise é de endividamento internacional, de ameaça de
bancarrota e de perda de autonomia de decisão, o verniz estala mais
facilmente. Ora é nesses momentos, quando são mais precisas, que a
revisão da Constituição e a reforma do Estado são mais difíceis. Não só
pela insuficiência de meios, mas também pela crispação entre partidos
políticos.
Os regimes de resgate financeiro e os deveres que lhes estão
associados fizeram com que os "cortes" e as "supressões", assim como as
mudanças nos regimes laborais, se transformassem em substitutos para a
reforma do Estado. Tal não deveria acontecer. As questões laborais não
se devem sobrepor aos objectivos fundamentais da reforma do Estado.
Paradoxalmente, em resultado de toda esta evolução brevemente
descrita, a reforma do Estado, aos olhos de muitas pessoas, tornou-se
urgente. O Estado está fraco de mais, pesado de mais, vagaroso de mais,
ineficiente de mais, capturado de mais por interesses particulares e
dependente de mais de poderes estrangeiros e internacionais. Mas urgente
não quer dizer de emergência. Urgente implica uma necessidade
inadiável, mas a sua satisfação pode ser feita gradualmente, ao longo do
tempo, com uma definição clara de objectivos, com uma estratégia
política e com um calendário razoável. A pressa seria desaconselhada,
sobretudo porque o Estado se encontra débil e dependente.
Esta debilidade ou esta crise do Estado português é agravada por
outros fenómenos. O primado dos partidos políticos permitiu que a
captura do Estado pelos interesses privados fosse facilitada. É através
dos partidos políticos que grupos económicos, empresas, sindicatos,
associações privadas, profissões e outros interesses retêm e possuem a
capacidade política de regulação e legislação, assim como os favores
económicos. É usual pensar que o "poder político", em democracia, deve
primar sobre o "poder económico".
Esta quase verdade consensual serve
para justificar a acção livre dos agentes políticos e, por essa via, o
privilégio acordado aos partidos políticos e a consequente submissão dos
outros interesses sociais. Acontece que é em parte esse primado da
política que serve a captura do Estado por interesses privados. Repito: é
por intermédio dos partidos que os interesses privados detêm
privilégios e poderes. Daqui não concluo que é necessário ou sequer
aconselhável afastar os partidos. Não. Necessário é moderá-los. O que só
pode ser feito com instituições democráticas sólidas. Evidentemente,
não há democracia sem partidos políticos. Mas também não há democracia
só com partidos como únicos agentes políticos.
A massificação da política, da economia e da cultura criou novos
fenómenos sociais, culturais e políticos aos quais é necessário prestar
atenção com olhar crítico. São os casos, por exemplo, das sondagens de
opinião permanentes e da comunicação imediata em tempo real, que
destruíram a noção de mandato democrático. Ou da fabricação de
realidades virtuais que leva o debate público para fora das instituições
políticas. Ou ainda da mercantilização do voto e dos processos
eleitorais que transformou esses processos políticos em espectáculo
encenado.
Todos estes fenómenos destruíram uma boa parte do prestígio da
profissão, da carreira e da função política, geralmente coincidente e
adequada às estruturas do Estado nacional. A actividade política perdeu
dignidade e reputação. O Estado hipotecado aos partidos e por eles
detido é fonte de desprestígio da actividade política.
Quase quatro décadas de democracia, acrescentadas a quase cinco de
autoritarismo, criaram um universo de contacto entre a vida privada e a
pública e entre os interesses económicos e a função política. Por várias
razões, não se procedeu a um desenho de fronteiras nítidas, nem se
criaram mecanismos eficientes de avaliação e julgamento. Mau grado a
aparência de força e autonomia, o Estado português é presa de interesses
e forças sociais. Tanto partidos políticos como grandes corpos
profissionais ou grupos económicos. Mais que a ilegalidade e a
promiscuidade sua companheira, são a confusão legal e a acumulação
legítima de funções e de interesses privados e públicos que distorcem e
dominam a vida pública portuguesa.
Convém nunca esquecer que se trata de um longo processo aberto à
sociedade. Pode demorar anos e não se confunde com um calendário
eleitoral. Nem com pagamento de dívidas ou resgate financeiro.
Reformar o Estado em democracia exige um plano, uma estratégia, um
condutor e um consenso alargado. Como se pode imaginar, a dificuldade
reside na necessidade de um consenso alargado (a não confundir com
unanimidade) e na indispensabilidade de um condutor, de um dirigente ou
de um piloto (pessoa, partido ou instituição). A direcção permite a
eficácia, a unidade de orientação e a consistência. O consenso alargado
permite, além das liberdades e da pluralidade, a persistência e a
duração no tempo.
De outro modo, teremos reformas aparentes e efémeras,
logo seguidas de novas reformas levadas a cabo por outros protagonistas
políticos, nomeadamente os partidos.
Por outro lado, em tempos de crise financeira, não é aconselhável
esperar demasiado de um esforço de reforma do Estado. Criar ou reformar
um Estado sob ameaça de bancarrota e sob a pressão dos credores
internacionais é tão errado e tão perigoso quanto criar ou reformar um
Estado à custa de dívida e com base em benesses demagógicas. São
necessários meios, que faltam. É precisa tranquilidade política,
inexistente. É indispensável independência, ausente. É imprescindível a
sinceridade política, em falha absoluta. Nenhum partido da oposição está
disponível para se associar aos partidos da maioria, arcando também com
as responsabilidades da situação actual.
Nenhum partido do governo está
preparado para ceder a sua posição, partilhando-a com outros. Nas
actuais condições de excepcional crispação e de degradação das relações
políticas e pessoais entre dirigentes partidários, nada parece favorecer
a preparação dos consensos alargados necessários. Reformar em
profundidade não parece possível actualmente. Preparar, estudar,
debater, negociar? sim! Ora, todos podem e devem tomar iniciativas de
reflexão e discussão: Parlamento, Governo, Presidente da República,
Forças Armadas, partidos políticos, instituições, magistratura,
universidades, profissões, associações e sindicatos.
Importa, por outro lado, considerar que a revisão profunda da
Constituição é parte central da reforma. Não é possível imaginar que a
reforma do Estado possa dispensar a revisão da Constituição. Os poderes
dos órgãos de soberania, o sistema eleitoral, a relação entre Estado
central e autarquia, a concepção da Administração Pública, o conceito de
funcionário público, o desenho dos grandes serviços públicos de Saúde,
Educação e Segurança social, a organização da Justiça e os direitos e os
deveres das instituições e das empresas privadas são aspectos
essenciais da reforma do Estado, mas a sua definição actual, que importa
rever e alterar, reside na Constituição.
O parlamento, o governo e o Presidente da República, assim como
inúmeras instituições privadas, poderiam criar grupos de reflexão e
debate. Desde que alguém, Presidente da República, presidente da
Assembleia da República ou Primeiro-ministro, diga que vale a pena, que
não é inútil. É a única maneira de evitar que a revisão da Constituição e
a reforma do Estado se transformem em armadilhas. Que é o que está a
acontecer!
Quanto aos conteúdos das reformas e da revisão, gostaria de distinguir alguns.
Considero útil a revisão profunda do sistema eleitoral, de modo a que
as eleições não sejam utilizadas exclusivamente pelos partidos
políticos e que os eleitos, partidários ou não, sejam pessoalmente
responsáveis. Não se trata de pretender que um parlamento feito de
independentes seja mais eficiente e mais responsável que um Parlamento
feito de grupos partidários. O mais importante é que haja mecanismos de
moderação do poder inquestionável dos partidos e das suas direcções.
A
possibilidade de candidaturas independentes, locais ou de outra
natureza, é sobretudo fértil, não porque se substitui aos partidos, mas
porque os ameaça e os obriga a superiores critérios de honestidade e
responsabilidade, assim como é a melhor maneira de abrir um partido à
sociedade.
Outra mudança que se me afigura necessária é a liquidação dos restos
do sistema de "confiança política" na Administração Pública, um dos
graves factores do mau governo e de captura partidária. Com as devidas
excepções, fundamentadas e em número reduzido, os cargos da
Administração, particularmente os dirigentes da alta administração,
deveriam todos ser exclusivamente preenchidos segundo critérios
técnicos, científicos, profissionais, de carreira, de mérito pessoal, de
dedicação e merecimento, em detrimento dos resquícios da "confiança
política" ainda em vigor. O anterior sistema, aprovado pela unanimidade
dos partidos, estabelecia que os mandatos dos directores gerais e
equiparados cessava com as eleições e a tomada de posse do novo governo.
Quer isto dizer, politizava e partidarizava legalmente a Administração
Pública. Esta prática, absolutamente legal, foi um autêntico veneno
durante décadas.
O actual governo mudou o sistema, e bem, dando por
terminada a "confiança política" plena e criando concursos, mas
infelizmente admitindo ainda a escolha, pelo ministro, entre vários
seleccionados através de concurso. Foi um progresso, mas evitou-se o
melhor.
A este propósito, outra mudança se revela importante: é a velha
questão da acumulação das funções privadas e públicas por parte dos
agentes do Estado, nomeadamente na Saúde, na Educação, na Consultoria,
nas Obras Públicas, na peritagem financeira, no contencioso e no apoio
jurídico?
Apesar das regras existentes, mais complacentes do que
severas, a acumulação é muito frequente e quase sempre legal, por via de
regimes de excepção que se tornam gerais. Também por isso se torna
imprescindível proceder a uma revisão profunda das funções de justiça,
fiscalização, avaliação, regulação e prestação de contas, as mais
frágeis e as mais críticas de todo o sistema político português.
Entre outras consequências dos novos métodos e dos novos princípios
de organização da Administração Pública, avulta a da possibilidade de
criar e desenvolver a capacidade científica e técnica do Estado que lhe
permita estudar, avaliar, escolher e decidir com mais competência, mais
isenção e menor intervenção dos interesses externos ou ocultos, sejam
eles partidários ou de qualquer outro tipo.
O recurso crescente do
Estado a entidades exteriores à Administração (técnicas, cientificas, de
consulta económica, de assessoria jurídica, etc.) parece ter tido mais
inconvenientes (dependência, interesses particulares, submissão
política?) do que vantagens. A verdade é que, hoje, parece termos diante
de nós um Estado decapitado, ao qual foi retirada grande parte da
competência técnica e científica.
O recurso sistemático a empresas
nacionais ou multinacionais de estudos, consultoria, aconselhamento,
gestão, apoio jurídico, engenharia financeira e tantas outras empobrece o
Estado, diminui a isenção das autoridades públicas, oculta os
procedimentos e não assegura a independência e o rigor. É cada vez mais
evidente que todas essas instituições demonstram e provam o que se lhes
pede. A tal ponto que as mesmas entidades conseguem fazer estudos
contraditórios.
Última observação:
evidentemente que a reforma do Estado não
dispensa, antes exige, a definição das novas fronteiras dos direitos e
deveres dos cidadãos, das empresas, das instituições, das associações,
das autarquias e do Estado, assim como o estabelecimento da nova
organização administrativa e territorial do Estado, com a consequente
revisão profunda dos sistemas ditos de subsidiariedade na Administração
Pública. Mas este objectivo parece poder ser aceite por todos, embora
cada um tenha ideias diferentes sobre o seu conteúdo.
Para terminar
A reforma do Estado é obra de uma geração. Deveria ser
gradual, reflectida e comum a uma parte importante das forças
políticas, sociais e culturais. Não deveria ser arma de arremesso, nem
emboscada, hoje eventualidades prováveis. Tudo milita, actualmente, para
que essa obra não seja cumprida. A começar pela pressa de uns e a
acabar na recusa de outros. Se ao menos os titulares dos órgãos de
soberania soubessem reflectir e preparar o futuro. Se ao menos os
dirigentes políticos quisessem levar a cabo tal empreendimento sem
pensar apenas no orgulho narcisista. Se ao menos os partidos fossem
capazes de fazer tantos sacrifícios quanto exigem deste nosso pobre
povo.
Artigo adaptado do discurso no Instituto de Defesa Nacional proferido no dia 6 de Novembro de 2013
IN "i"
18/11/13
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