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Muita tinta já correu sobre um termo que é frequentemente aplicado e raramente aplicável: a cultura de cancelamento. O cancelamento é, na sua essência, uma forma de censura social em que a pressão da opinião pública resulta em consequências práticas na vida de quem o sofre, como a perda de fontes de rendimento ou de visibilidade. Ouvimo-lo quando se criticam comportamentos ou opiniões de figuras públicas, quando se acusam homens de agressão sexual ou até quando se discorda de alguém com um perfil anónimo e menos de 50 seguidores.
Regra geral, o termo é usado como um mecanismo de autodefesa, que tem como propósito descredibilizar qualquer pensamento crítico ou diálogo construtivo sobre um determinado acontecimento e o porquê de esse acontecimento ter motivado a indignação de um determinado grupo de pessoas. Uma demonstração de relutância em aceitar a realidade contemporânea da era digital, que se rege pelo velho ditado “Quem diz o que quer ouve o que não quer”. Ironicamente, alegando que o usufruto da liberdade de expressão de quem critica é um atentado à liberdade de expressão de quem é criticado. Ao gritar-se “cultura de cancelamento”, constrói-se uma narrativa na qual a pessoa que fez algo, alegadamente, condenável assume, automaticamente, o papel de vítima, apesar de não sofrer quaisquer consequências práticas – apenas críticas.
É um atalho fácil para quem discorda das críticas e não tem qualquer intenção de sequer admitir a possibilidade de estar errado. É uma estratégia publicitária preguiçosa para quem prefere criar a ilusão de que é oprimido e censurado a assumir responsabilidade pelos seus comportamentos. E, portanto, compreendo que seja aliciante. Hoje em dia, há até quem, infantilmente, o considere uma medalha de honra e quem o veja como uma fonte do lucro – clamando serem silenciados perante salas de espetáculo lotadas com pessoas que pagaram para ouvi-los. Imaginem-no como uma estrela Michelin para restaurantes que servem intoxicações alimentares.
Mas a cultura de cancelamento existe – só não como tendem a acreditar.
Em fevereiro de 2020, em resposta a um relatório do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que condenava as violações dos direitos humanos por parte do regime israelita, o primeiro-ministro israelita publicou no, então, Twitter, que “quem boicotasse Israel seria boicotado”. Admitia, orgulhosamente, que havia trabalhado, durante os últimos anos, em conjunto com as instituições políticas dos Estados Unidos da América a fim de promover legislação que garantisse isso mesmo: silenciar quem criticasse o regime.
Na passada semana, o CEO da Web Summit, Paddy Cosgrove, escreveu que “crimes de guerra são crimes de guerra mesmo quando são cometidos por aliados e devem ser chamados exatamente pelo que são”. Uma afirmação bastante neutra que deveria ser considerada uma verdade absoluta à luz do direito internacional – essa coisa que aparentemente deixa de existir quando o agressor é aliado político dos nossos líderes ocidentais. Muito alarido e alguns desnecessários pedidos de desculpa depois, Paddy Cosgrove passou a ser ex-CEO da Web Summit, demitindo-se e dando lugar a alguém mais adestrado que não fuja do guião. Vários críticos do regime israelita e palestinos de qualquer setor profissional têm sido vítimas de semelhante assédio moral e das suas consequências.
Longe de mim querer pintar um multimilionário como vítima quando, apenas nas últimas três semanas, o regime israelita assassinou mais de 3 mil crianças. Aliás, melhores exemplos ainda de uma cultura de cancelamento efetiva são as várias proibições de manifestações de solidariedade com a Palestina pela Europa fora e nos Estados Unidos – nomeadamente pelo candidato presidencial, Ron DeSantis, outro grande paladino da liberdade, que havia também já banido educação sexual e livros que incluem representações da comunidade LGBTQIA+ das escolas da Florida.
O pânico moral que vem sendo levantado à volta da cultura de cancelamento parte de um sentimento de ameaça. As franjas mais conservadoras temem que a hegemonia da qual têm usufruído historicamente – o monopólio do cancelamento – seja ameaçada pelas massas que cada vez mais a questionam e se opõem a ela, criando uma ilusão em que o opressor sistemático se torna oprimido. No pior ou melhor cenários – dependendo do lado em que nos posicionamos –, o que vemos é simplesmente uma crescente dissonância entre a ideologia dominante e as pessoas que vão fugindo do guião; e o normal funcionamento das forças do mercado – o que se torna popular, torna-se lucrativo. Mas a hegemonia permanece, ainda, sã e salva.
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