.
O Estado Social e
a União Europeia:
“do berço à cova”
A Europa é acima de tudo uma ideia, que dentro dela contém dois projetos antagónicos: o Estado Social europeu e a União Europeia.
Há dois consensos hoje entre os intelectuais europeus: a Europa só
sobrevive a um conflito previsível e de dimensões desconhecidas com
direitos sociais e coesão interna; e a Europa não sobrevive sem Europa.
A Europa não é um continente. Não é uma moeda. Nem é a União
Europeia. A Europa é acima de tudo uma ideia, que dentro dela contém
dois projetos antagónicos: o Estado Social europeu e a União Europeia.
Esta contradição está, entre outras coisas, na origem da votação popular
no “Brexit", mais do que os “populismos” (aliás, excessivamente levados ao colo pelos media).
Estamos num cruzamento histórico entre dois projetos, tudo indica,
irreconciliáveis. Que a rigor nunca estiveram juntos, apesar de o senso
comum insistir em associar União Europeia a Estado Social.
O Estado Social nasceu na Europa em 1945, de um pacto social inédito até então entre capital e trabalho.
Pacto que em 1947 e 1948 estava criado e consolidado, com uma vastidão
de direitos universais prestados pelos Estados nunca conhecida na
história.
A União Europeia (antes CEE e CECA) nasce historicamente de um acordo entre as classes sociais dirigentes dos países mais ricos, na Europa, sobretudo o motor industrial, França e Alemanha. É um pacto entre capitais. O projeto europeu começa em 1947, vai desenvolver-se muito lentamente, ter o seu primeiro ato em 1951, mas só nos anos 80, depois das crises de 1970-73 e 1981-84, é que vai consolidar-se. É um projeto económico complexo, também ele inédito no processo histórico, mas cuja força motriz é económica e institucional, e as suas dimensões sociais são fundamentalmente consolidadas a partir da década de 1980 como assistencialistas. À medida que a União Europeia se consolida, o Estado Social entra em crise. Justamente porque o projeto europeu que existe hoje não é o de 1945, mas o dos anos 90, o neoliberalismo.
A União Europeia (antes CEE e CECA) nasce historicamente de um acordo entre as classes sociais dirigentes dos países mais ricos, na Europa, sobretudo o motor industrial, França e Alemanha. É um pacto entre capitais. O projeto europeu começa em 1947, vai desenvolver-se muito lentamente, ter o seu primeiro ato em 1951, mas só nos anos 80, depois das crises de 1970-73 e 1981-84, é que vai consolidar-se. É um projeto económico complexo, também ele inédito no processo histórico, mas cuja força motriz é económica e institucional, e as suas dimensões sociais são fundamentalmente consolidadas a partir da década de 1980 como assistencialistas. À medida que a União Europeia se consolida, o Estado Social entra em crise. Justamente porque o projeto europeu que existe hoje não é o de 1945, mas o dos anos 90, o neoliberalismo.
Hoje, entre 1,4% e 2,5% do PIB na Europa (Sul e Norte) é alocado na
UE a programas assistenciais de “estímulo ao emprego”, num continente
que aboliu o pleno emprego. O que a precariedade tem trazido é mais
lucro (e menos riqueza), mais controlo social, perda de motivação
laboral e erosão do Estado Social e da Segurança Social pelos baixos
salários. E concorrência e dumping que colocam os povos
europeus uns contra os outros. A União Europeia não só não é o Estado
Social como a sua evolução a partir dos anos 90 significou uma quebra no
Estado Social, substituído por um Estado assistencial.
No final
da II Guerra Mundial, de uma conjuntura em que a derrota nazi fora
obtida também com sectores de trabalhadores armados, com uma escassez
real de força de trabalho, com a resistência a ter penetrado nas
estruturas de organização da sociedade (representando em muitos lugares
um poder alternativo ao do Estado, que geria mesmo localidades, cidades,
fábricas), em que a propriedade estava destruída, devastada e,
finalmente, no meio de uma onda de greves realizadas fora das estruturas
sindicais, particularmente fortes em França e Inglaterra, em 1947-48,
desta conjuntura, dizia, nasce o primeiro pacote universal de direitos
laborais e sociais na Europa: o Estado Social europeu.
Com diferenças entre si, todos os planos sociais universais assentavam na ideia de redistribuição com taxação progressiva: quem ganha mais deve pagar mais.
Configuravam, de forma diversa consoante o país (no tipo de serviços
prestados e na origem das receitas), um conjunto amplo que garantia a
proteção de quem trabalhava, desde a infância até à morte. O Estado
Social, do berço à cova. Deixando para trás a dependência da família, a
insegurança do desemprego, a mendigagem do assistencialismo arbitrário.
Do pacto social europeu fazem parte ainda, centralmente, os direitos
laborais. Que limitavam a acumulação de lucro, sem a impedir porém. Os
princípios humanitários contra as condições humilhantes em que viviam as
classes trabalhadoras – sufragados pela OIT, nascida do Tratado de
Versalhes na I Guerra – não eram suficientes para impedir os
trabalhadores de ameaçar a ordem e a hierarquia estabelecidas na
acumulação capitalista. Queriam segurança no emprego.
Segurança
no emprego em regimes democráticos significa controlo parcial do preço
do salário pelos trabalhadores. Porque no capitalismo, sem ditaduras
(nas ditaduras o salário é regulado pela proibição de sindicatos e
partidos de trabalhadores), o regulador do salário é o desemprego ou a
ameaça deste. Este estava agora limitado por um conjunto de leis e
pactos com os sindicatos e partidos representantes dos trabalhadores,
que proibiam os despedimentos ou associavam a estes avultadas
indemnizações que os dissuadiam.
O outro facto é a destruição
física da propriedade. Para reconstrui-la era necessário um acordo
interno com quem ia fazê-lo, as classes trabalhadoras. Mas era também
indispensável uma economia planificada para reerguer as estruturas
destruídas: redes de estradas, ferrovias, fábricas, rede eléctrica,
distribuição de água, saúde e educação, etc. Ken Loach chamou-lhe, às
lutas sociais e ao esforço de construção planificado da economia e do
Estado Social, O Espírito de 45, num filme distinguido na Grã-Bretanha, em 2013, como o melhor documentário do ano.
As
privatizações de Margaret Thatcher, nos anos 80, e as dos outros
governos europeus implicavam a derrota dos sindicatos que tinham
assinado o pacto social, a começar pelo elo mais forte, o dos mineiros.
Mas só eram rentáveis porque o Estado, através de impostos, tinha
assumido a viabilidade económica da construção das empresas, que depois
serão privatizadas. O capitalismo, para se “salvar de si próprio”,
recorreu à economia planificada.
O Acto Único Europeu adoptado em
1986 – numa altura em que dentro da UE e dos seus apoiantes vinga o
projecto neoliberal – promovia a remoção de todos os obstáculos à
circulação de capitais e mercadorias, incentivando as privatizações e a
flexibilização do mercado de trabalho. Como o projeto europeu federativo
tinha fracassado (só poderia ter existido numa relação tendencialmente
igual que implicava transferência de conhecimento, patentes, formação,
dos países mais ricos para os países mais pobres), uma vez adoptado um
mercado único e a livre circulação, iam abrir-se necessariamente as
portas da desigualdade. O controlo da inflação do Tratado de Maastricht
(1992), que criou a União Europeia (UE), era fundamental para a
Alemanha, que estava mergulhada numa crise profunda com a reunificação,
em 1990. O Tratado estabelecia que a relação entre o défice orçamental e
o PIB não podia exceder 3%. Na prática, como não há taxas reais de
crescimento superiores a 3%, isto significava que os países mais pobres
não tinham outra saída senão a de fazer cortes dramáticos nas despesas
públicas.
Da mesma forma que a crise de 1970 tinha dado um impulso decisivo à
criação da moeda única, o Tratado de Lisboa, que entrou em vigor em 2009
e substituiu o direito ao trabalho pelo direito a procurar emprego,
pondo assim fim ao pacto social europeu, não pode ser desvinculado dos
efeitos da crise de esgotamento das “novas tecnologias” de 2001, e depois da crise de 2008.
Com a Europa a enfrentar a questão do mercado de trabalho europeu como
um dos pontos centrais do seu programa na última década (2008-2018). A
crise aprofundou-se, portanto. Menos investimento público, mais
imobilização da capacidade produtiva (desemprego), salários mais baixos,
desgaste cada vez maior da força de trabalho (em exaustão, burn out,
sofrimento generalizado), usada ao limite cada vez mais, com um aumento
brutal da intensificação dos ritmos e mesmo das horas reais
trabalhadas. O que será da UE quando chegar a crise do investimento em
automação, com os esqueletos no armário do Fundo de Estabilização de
2008?
*Historiadora, autora de Breve História da Europa (Bertrand)
IN "PÚBLICO"
21/05/19
.
Sem comentários:
Enviar um comentário