12/07/2018

FARANAZ KESHAVJEE

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Sentimento Ismaili

O desafio de pensar e intelectualizar “complica” mais a vida de quem pretende dominar. É difícil governar muitas cabeças pensantes. Obrigar à fixidez e rigidez facilita qualquer governação. (...) Os Ismailis têm um líder que, ao invés de querer normativizar práticas e rituais, ou impor, consulta primeiro os seus crentes.

O desafio de pensar e intelectualizar “complica” mais a vida de quem pretende dominar. É difícil governar muitas cabeças pensantes. Obrigar à fixidez e rigidez facilita qualquer governação. (...) Os Ismailis têm um líder que, ao invés de querer normativizar práticas e rituais, ou impor, consulta primeiro os seus crentes

Haverá inúmeras formas de os Muçulmanos Ismailis reconhecerem o apreço e valor de um Imam. Gosto particularmente da metáfora da forma como diferentes joalheiros e artesãos olhariam para um diamante esculpido. Uns veriam brilhantes tons de verde, outros rosa cintilante, outros ainda, um azul cristalino... as tonalidades variariam consoante a perspetiva e o olhar; mas o diamante esculpido é sempre o mesmo; e existe! É essa a perspetiva Shiita Ismaili que nos é ensinada desde cedo – olhar o Imam, respeitando todas as tonalidades que os outros lhe reconheçam, e simultaneamente, aprender que é na diversidade de ideias e pensamentos, e no que a partir deles se constrói, que o conhecimento aumenta.

Este é efetivamente um desafio do shiismo fundacional – procurar a fé usando o intelecto, e reconhecendo a unidade na diversidade. Uma corrente religiosa considerada mais progressista por alguns teóricos do Islão, o shiismo, valoriza a essência para dar conteúdo à forma; é uma fé mais esotérica, portanto. É uma forma de interpretação do Islão que teve menos adeptos do que o sunismo, por exemplo. Provavelmente, porque o desafio de pensar e intelectualizar “complica” mais a vida de quem pretende dominar. É difícil governar muitas cabeças pensantes. Obrigar à fixidez e rigidez facilita qualquer governação. É assim no Islão; será assim em qualquer outra estrutura religiosa ou política.

Os Ismailis, contudo, têm um líder que, ao invés de querer normativizar práticas e rituais, ou impor, consulta primeiro os seus crentes. Escuta-os nos seus diferentes contextos. Às vezes encontra interlocutores menos capazes... e as coisas não correm tão bem. Mas essa é outra história. Afinal, o desafio tem de ser permanente, certo?

Entre ateus, anarquistas, agnósticos, e crentes, o Imam Ismaili lidera uma comunidade que celebra agora 60 anos de liderança exemplar. Os jovens Tajiques Ismailis reconhecem-lhe a capacidade de tornar toda a sua região pobre e subdesenvolvida, noutra de prosperidade económica, infraestrutural, e educacional, permitindo ao povo a possibilidade de mobilidade social e política ascendente. Os refugiados Sírios Ismailis são-lhe profundamente gratos por em circunstância alguma lhes ter sido pedido que abdicassem de uma nacionalidade síria, de que se orgulham, por outra qualquer identidade religiosa, e por lhes ter encorajado a tornar a cidade de Salamyia um case-study no convívio entre crentes de várias fés, e etnias, e um lugar de paz num país ainda em guerra e profundamente fragmentado. Os portugueses, por nos ter ensinado a orgulhar-nos e a servir a nossa pátria, e a sermos primeiramente cidadãos nacionais, intervindo sempre de forma 
informada, ética e instruída.

Enquanto portuguesa, investigadora e mulher, sou-lhe profundamente grata por ter encorajado, desde o tempo do imamato do seu avô, a que famílias Ismailis percebessem a importância que têm as mulheres educadas na transformação e evolução das sociedades humanas. E tendo-me especializado nas questões de género, sei que posso hoje contribuir para dar aquele salto qualitativo, que ainda falta dar, não só dentro da comunidade, mas quiçá também na realidade política portuguesa.

É também enquanto investigadora das identidades sociais que venho chamando a atenção para o perigo das hegemonias religiosas. Concordando com Jean-Paul Sartre, quando disse que o Judeu existe primeiro na cabeça do antissemita, defendo que um muçulmano, ou um Ismaili, é antes de tudo, um cidadão do seu país, sendo esse Portugal, a Síria, o Tajiquistão, ou outro. Creio que a Europa e o mundo lhe deverão igualmente reconhecer a capacidade de ter sido capaz, através das suas determinantes orientações, de nos preparar para rejeitar todo e qualquer tipo de radicalismo religioso, não obstante os eventuais estigmas que vamos encontrando, até entre os letrados (!), de viver e agir enquanto cidadãos integrados, e sempre de acordo com a ética cosmopolita que preconiza. Sei que Portugal lhe reconhece isto e é por isso que devemos todos celebrar.


* Faranaz Keshavjee nasceu a 11 de Janeiro de 1968, em Moçambique, na então capital Lourenço Marques e chegou como “retornada” a Portugal, em Setembro de 1974, aterrando no Bairro Alto, bem no meio das ruas estreitas e carismáticas por onde passavam o fado, as varinas e os travestis. O fascínio e o gosto pelo estudo e investigação nas ciências sociais e humanas levaram-na a estudar primeiro para uma licenciatura em Antropologia Social e depois um Mestrado em Psicologia Social no ISCTE, seguindo depois para o Reino Unido onde se especializou em Estudos Islâmicos e Humanidades, no Institute of Ismaili Studies em Londres, e prosseguindo a sua investigação para um doutoramento na Universidade de Cambridge. As questões de género e identidades sociais dos muçulmanos em Portugal fizeram parte dos seus trabalhos académicos. Quando regressou a Portugal trabalhou no Centro Ismaili como consultora académica, e deu aulas nas Universidade Católica, Lusófona e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Traduziu obras académicas sobre o Islão, foi conferencista em debates nacionais e internacionais, cronista no Público e bloguer no Expresso. O 11 de Setembro foi a data a partir da qual passou a ser referência incontornável nas discussões, entrevistas e publicações sempre que se tratasse de questões ligadas ao Islão e às sociedades muçulmanas.

IN "VISÃO"
09/07/18

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