24/06/2018

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HOJE NA
"SÁBADO"
A guerra às superbactérias que 
se trava nos hospitais portugueses

Há cada vez menos antibióticos eficazes contra estes agentes multirresistentes – o último surto aconteceu em Abril. O objectivo não é eliminá-los, mas evitar a sua disseminação. Saiba como.

O dia 7 de Agosto de 2015 mudaria para sempre o hospital de Gaia. A equipa responsável pelo controlo de infecções do Centro Hospitalar recebeu uma mensagem, até então inédita, do laboratório: tinha sido isolada num doente uma bactéria multirresistente, ou seja, produtora de uma enzima que destrói os antibióticos. Foi preciso agir rapidamente. A prioridade, além de ajustar o tratamento ao doente – um homem de 60 e poucos anos que tinha sido operado a uma inflamação da vesícula biliar e que, três dias depois, desenvolveu uma pneumonia – para que ele pudesse sobreviver, era conter a infecção. Como? Investigando todos os locais do hospital por onde ele tinha passado para perceber qual a fonte da infecção e se mais doentes tinham a bactéria.
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Numa semana, encontraram-se sete casos e identificou-se a origem da infecção: uma mulher de 70 anos, operada a um tumor no intestino e cujo estado se complicara. Estava internada pela segunda vez, fazia mais de um mês. O hospital tomou medidas extremas: rastrear todos os doentes. Piso a piso, numa semana, foram analisadas (com zaragatoas rectais) mais de 300 pessoas. 

Este primeiro grande surto de Klebsiella pneumoniae em Portugal causou três mortes. Mais de 100 pessoas contraíram a bactéria. Só cinco meses depois, em Janeiro de 2016, foi decretado o fim do surto, mas a bactéria não desapareceu. "Este tipo de microrganismos, quando chega, fica. Nunca conseguiremos eliminá -los. O objectivo é controlá-los, evitar a disseminação", explica à SÁBADO Margarida Mota, do grupo coordenador local do Programa de Prevenção e Controlo das Infecções e de Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA) do Centro Hospitalar de Gaia.

Desde então já houve em Portugal pelo menos dois surtos com a mesma bactéria: em Fevereiro de 2016, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, foram detectados 24 doentes colonizados, e três morreram devido à infecção; e recentemente, em Abril deste ano, oito doentes foram isolados no hospital de Viseu. 

Pode parecer alarmista, mas em Portugal morrem mais pessoas por infecções contraídas em hospitais do que em acidentes de viação. Paulo André Fernandes, intensivista no Centro Hospitalar do Barreiro/ Montijo e também coordenador local do PPCIRA, fez as contas. "Hoje, em todo o mundo, morrem 700 mil pessoas de infecções associadas a microrganismos multirresistentes. Dá mais de 1.900 mortes por dia e, se estimarmos uma proporção para a população portuguesa, morrem duas a três pessoas por dia. Todos os dias", sublinha.

A Klebsiella é dos agentes que mais preocupa os profissionais de saúde, não só porque se dissemina muito rapidamente, mas também porque tem adquirido cada vez mais resistência aos antibióticos.

Nomeadamente, aos chamados carbapenemos, uma classe de medicamentos de última linha e um dos mais avançados. Faz parte de um grupo de bactérias que se podem encontrar no intestino humano. "O problema é que em determinadas condições, nomeadamente em meio hospitalar, em situações de depressão da imunidade, estas bactérias não vivem em harmonia umas com as outras e provocam doença", explica o médico. Entre pessoas saudáveis não constituem perigo, "porque elas têm as suas bactérias normais que não facilitam a proliferação deste tipo de agente resistente", explica.

Antibióticos antigos, mais tóxicos
Os sintomas não são facilmente distinguíveis, até porque a bactéria pode causar infecção em sítios diferentes. Por exemplo, um doente algaliado tem mais risco de infecção urinária e uma pessoa entubada ou com doença do pulmão tem mais tendência a ter pneumonia. Os casos mais graves são aqueles em que a infecção está presente no sangue e manifesta-se, normalmente, em doentes com cateteres venosos centrais. A diferença é que a doença provocada por esta bactéria é mais difícil de tratar – o que justifica a sua alta taxa de mortalidade, entre 20 e 60%, dependendo do local da infecção.

A resistência ao tratamento é o seu principal perigo. "Temos neste momento opções muito limitadas e precisamos de recorrer a antibióticos que já não usávamos porque têm relativa toxicidade", explica a especialista Margarida Mota. Como a fosfomicina ou a colistina, que são dos primórdios dos antibióticos e que tinham sido postos de parte devido a efeitos secundários, nomeadamente para os rins. Além disso, como a bactéria destrói várias classes de antibióticos, os médicos têm de usar associações destes medicamentos, o que acresce a toxicidade.

Margarida Mota diz que ainda não houve nenhum caso de infecção que não tenha reagido a qualquer tratamento, mesmo nos doentes que morreram. Mas os desafios são muitos: "Já temos de puxar pela cabeça, olhamos para o esquema de antibióticos e pensamos: ‘Agora, o que é que fazemos?’" Mesmo os antibióticos que foram usados na fase inicial do surto (em 2015) começam a não resultar. "Vamos perdendo armas e perdendo esta guerra", admite à SÁBADO.

A resistência bacteriana é, na verdade, um fenómeno natural. "As bactérias vivem no meio ambiente em que há compostos com acção antibiótica e elas, para se perpetuarem, têm de criar mecanismos de resistência a esses compostos", explica Paulo André Fernandes, o antigo director nacional do programa PPCIRA. Além disso, também é potenciada pelo uso dos antibióticos. As bactérias têm vários mecanismos de defesa: podem produzir enzimas que destroem os antibióticos, fechar os esporos por onde estes medicamentos entram ou até tornar a sua membrana impermeável às substâncias.

Uma das coisas que se podem fazer para evitar este problema, além de usar melhor os antibióticos a nível hospitalar, é detectar precocemente os casos de doentes que são portadores da bactéria – os que podem disseminá-la, embora não tenham manifestações clínicas da doença. É que as bactérias passam das pessoas para os ambientes e para as superfícies e de umas pessoas para as outras. E os dispositivos médicos, como drenos, cateteres, algálias, termómetros, etc., podem trazer a bactéria do interior para o exterior. Calcula-se que a Klebsiella possa sobreviver nas superfícies entre 48 e 72 horas.

Como os hospitais se defendem
Para evitar a disseminação, e aprendendo com o que aconteceu em 2015, o hospital de Gaia faz actualmente rastreios todos os dias – uma média de 60 por dia. Qualquer pessoa que entre nas urgências vinda de um lar, de uma unidade de cuidados continuados ou de outra instituição, que tenha estado internada no último ano ou que seja doente de hemodiálise faz rastreio na admissão. "Se for positivo vai para as áreas de isolamento, se for negativo, de sete em sete dias repete-se a análise para ver se o doente adquiriu a bactéria", diz.

Há duas áreas predefinidas só para estas pessoas e há também equipas de enfermagem e auxiliares dedicadas só a estes doentes; os médicos entram com os equipamentos de protecção individual (bata, luvas e máscara sempre que estão em contacto com o doente). Também se faz a limpeza do ambiente: retiram-se todos os doentes da enfermaria, limpam-se as superfícies, inclusive paredes e tecto, e depois ligam-se as máquinas de peróxido de hidrogénio (um produto que mata as bactérias).

Os últimos dados de infecção hospitalar conhecidos, do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (de 2013), indicam que Portugal tinha uma taxa de infecção hospitalar muito superior à média europeia. Também se assistiu a um aumento da percentagem de infecções com Klebsiella – entre 2015 e 2016 terá aumentado 73%.

Para mudar este cenário, a Fundação Gulbenkian lançou em 2015 o projecto STOP Infecção Hospitalar, com o objectivo de reduzir para metade, em três anos, quatro das mais comuns infecções hospitalares: do trato urinário associada ao cateter vesical (algália); pneumonias associadas a intubação; infecção do sangue relacionada com o cateter venoso central e cirurgias da anca, do joelho, vesícula e colorrectal. A iniciativa abrangeu 19 hospitais de todo o País e as metas propostas foram cumpridas – o que fez com que o Governo anunciasse o alargamento das práticas a todos os hospitais do País.

"O risco zero em saúde não existe, vamos sempre ter infecções, mas ao combatê-las estamos a reduzir um sério problema de saúde pública", diz à SÁBADO Paulo Sousa, coordenador da comissão executiva deste desafio da Gulbenkian. Além disso, a redução das infecções também é uma medida importante em termos de custos, já que as infecções aumentam a mortalidade, o tempo de internamento e as despesas.

Em última análise, admitem os profissionais, o que está em causa pode mesmo ser um recuo civilizacional. "Identificamos as bactérias porque temos técnicas altamente eficazes, mas depois não temos como resolver o problema ao doente. Corremos o risco de ir outra vez para a era pré-antibiótica, em que víamos os doentes a morrer porque não tínhamos antibióticos para lhes dar", diz Margarida Mota. 

* Vivemos uma época perigosa, somos muito evoluídos mas incapazes de resolver questões fulcrais, dá azo a que epidemias religiosas apocalípticas tenham terreno fácil para a crendice.

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