HOJE NA
"SÁBADO"
A guerra às superbactérias que
se trava nos hospitais portugueses
Há cada vez menos antibióticos eficazes contra estes agentes multirresistentes – o último surto aconteceu em Abril. O objectivo não é eliminá-los, mas evitar a sua disseminação. Saiba como.
O dia 7 de Agosto de 2015 mudaria para sempre o hospital de Gaia. A
equipa responsável pelo controlo de infecções do Centro Hospitalar
recebeu uma mensagem, até então inédita, do laboratório: tinha sido
isolada num doente uma bactéria multirresistente, ou seja, produtora de
uma enzima que destrói os antibióticos. Foi preciso agir rapidamente. A
prioridade, além de ajustar o tratamento ao doente – um homem de 60 e
poucos anos que tinha sido operado a uma inflamação da vesícula biliar e
que, três dias depois, desenvolveu uma pneumonia – para que ele pudesse
sobreviver, era conter a infecção. Como? Investigando todos os locais
do hospital por onde ele tinha passado para perceber qual a fonte da
infecção e se mais doentes tinham a bactéria.
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Numa
semana, encontraram-se sete casos e identificou-se a origem da
infecção: uma mulher de 70 anos, operada a um tumor no intestino e cujo
estado se complicara. Estava internada pela segunda vez, fazia mais de
um mês. O hospital tomou medidas extremas: rastrear todos os doentes.
Piso a piso, numa semana, foram analisadas (com zaragatoas rectais) mais
de 300 pessoas.
Este primeiro grande surto de Klebsiella pneumoniae
em Portugal causou três mortes. Mais de 100 pessoas contraíram a
bactéria. Só cinco meses depois, em Janeiro de 2016, foi decretado o fim
do surto, mas a bactéria não desapareceu. "Este tipo de microrganismos,
quando chega, fica. Nunca conseguiremos eliminá -los. O objectivo é
controlá-los, evitar a disseminação", explica à SÁBADO
Margarida Mota, do grupo coordenador local do Programa de Prevenção e
Controlo das Infecções e de Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA) do
Centro Hospitalar de Gaia.
Desde então já houve em Portugal pelo
menos dois surtos com a mesma bactéria: em Fevereiro de 2016, no Centro
Hospitalar e Universitário de Coimbra, foram detectados 24 doentes
colonizados, e três morreram devido à infecção; e recentemente, em Abril
deste ano, oito doentes foram isolados no hospital de Viseu.
Pode parecer alarmista, mas em Portugal morrem mais pessoas por
infecções contraídas em hospitais do que em acidentes de viação. Paulo
André Fernandes, intensivista no Centro Hospitalar do Barreiro/ Montijo e
também coordenador local do PPCIRA, fez as contas. "Hoje, em todo o
mundo, morrem 700 mil pessoas de infecções associadas a microrganismos
multirresistentes. Dá mais de 1.900 mortes por dia e, se estimarmos uma
proporção para a população portuguesa, morrem duas a três pessoas por
dia. Todos os dias", sublinha.
A Klebsiella é dos agentes que
mais preocupa os profissionais de saúde, não só porque se dissemina
muito rapidamente, mas também porque tem adquirido cada vez mais
resistência aos antibióticos.
Nomeadamente, aos chamados carbapenemos,
uma classe de medicamentos de última linha e um dos mais avançados. Faz
parte de um grupo de bactérias que se podem encontrar no intestino
humano. "O problema é que em determinadas condições, nomeadamente em
meio hospitalar, em situações de depressão da imunidade, estas bactérias
não vivem em harmonia umas com as outras e provocam doença", explica o
médico. Entre pessoas saudáveis não constituem perigo, "porque elas têm
as suas bactérias normais que não facilitam a proliferação deste tipo de
agente resistente", explica.
Antibióticos antigos, mais tóxicos
Os sintomas não
são facilmente distinguíveis, até porque a bactéria pode causar infecção
em sítios diferentes. Por exemplo, um doente algaliado tem mais risco
de infecção urinária e uma pessoa entubada ou com doença do pulmão tem
mais tendência a ter pneumonia. Os casos mais graves são aqueles em que a
infecção está presente no sangue e manifesta-se, normalmente, em
doentes com cateteres venosos centrais. A diferença é que a doença
provocada por esta bactéria é mais difícil de tratar – o que justifica a
sua alta taxa de mortalidade, entre 20 e 60%, dependendo do local da
infecção.
A resistência ao tratamento é o seu principal perigo.
"Temos neste momento opções muito limitadas e precisamos de recorrer a
antibióticos que já não usávamos porque têm relativa toxicidade",
explica a especialista Margarida Mota. Como a fosfomicina ou a
colistina, que são dos primórdios dos antibióticos e que tinham sido
postos de parte devido a efeitos secundários, nomeadamente para os rins.
Além disso, como a bactéria destrói várias classes de antibióticos, os
médicos têm de usar associações destes medicamentos, o que acresce a
toxicidade.
Margarida Mota diz que ainda não houve nenhum caso
de infecção que não tenha reagido a qualquer tratamento, mesmo nos
doentes que morreram. Mas os desafios são muitos: "Já temos de puxar
pela cabeça, olhamos para o esquema de antibióticos e pensamos: ‘Agora, o
que é que fazemos?’" Mesmo os antibióticos que foram usados na fase
inicial do surto (em 2015) começam a não resultar. "Vamos perdendo armas
e perdendo esta guerra", admite à SÁBADO.
A
resistência bacteriana é, na verdade, um fenómeno natural. "As bactérias
vivem no meio ambiente em que há compostos com acção antibiótica e
elas, para se perpetuarem, têm de criar mecanismos de resistência a
esses compostos", explica Paulo André Fernandes, o antigo director
nacional do programa PPCIRA. Além disso, também é potenciada pelo uso
dos antibióticos. As bactérias têm vários mecanismos de defesa: podem
produzir enzimas que destroem os antibióticos, fechar os esporos por
onde estes medicamentos entram ou até tornar a sua membrana impermeável
às substâncias.
Uma das coisas que se podem fazer para evitar
este problema, além de usar melhor os antibióticos a nível hospitalar, é
detectar precocemente os casos de doentes que são portadores da
bactéria – os que podem disseminá-la, embora não tenham manifestações
clínicas da doença. É que as bactérias passam das pessoas para os
ambientes e para as superfícies e de umas pessoas para as outras. E os
dispositivos médicos, como drenos, cateteres, algálias, termómetros,
etc., podem trazer a bactéria do interior para o exterior. Calcula-se
que a Klebsiella possa sobreviver nas superfícies entre 48 e 72 horas.
Como os hospitais se defendem
Para
evitar a disseminação, e aprendendo com o que aconteceu em 2015, o
hospital de Gaia faz actualmente rastreios todos os dias – uma média de
60 por dia. Qualquer pessoa que entre nas urgências vinda de um lar, de
uma unidade de cuidados continuados ou de outra instituição, que tenha
estado internada no último ano ou que seja doente de hemodiálise faz
rastreio na admissão. "Se for positivo vai para as áreas de isolamento,
se for negativo, de sete em sete dias repete-se a análise para ver se o
doente adquiriu a bactéria", diz.
Há duas áreas predefinidas só
para estas pessoas e há também equipas de enfermagem e auxiliares
dedicadas só a estes doentes; os médicos entram com os equipamentos de
protecção individual (bata, luvas e máscara sempre que estão em contacto
com o doente). Também se faz a limpeza do ambiente: retiram-se todos os
doentes da enfermaria, limpam-se as superfícies, inclusive paredes e
tecto, e depois ligam-se as máquinas de peróxido de hidrogénio (um
produto que mata as bactérias).
Os últimos dados de infecção
hospitalar conhecidos, do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de
Doenças (de 2013), indicam que Portugal tinha uma taxa de infecção
hospitalar muito superior à média europeia. Também se assistiu a um
aumento da percentagem de infecções com Klebsiella – entre 2015 e 2016
terá aumentado 73%.
Para mudar este cenário, a Fundação
Gulbenkian lançou em 2015 o projecto STOP Infecção Hospitalar, com o
objectivo de reduzir para metade, em três anos, quatro das mais comuns
infecções hospitalares: do trato urinário associada ao cateter vesical
(algália); pneumonias associadas a intubação; infecção do sangue
relacionada com o cateter venoso central e cirurgias da anca, do joelho,
vesícula e colorrectal. A iniciativa abrangeu 19 hospitais de todo o
País e as metas propostas foram cumpridas – o que fez com que o Governo
anunciasse o alargamento das práticas a todos os hospitais do País.
"O
risco zero em saúde não existe, vamos sempre ter infecções, mas ao
combatê-las estamos a reduzir um sério problema de saúde pública", diz à
SÁBADO Paulo Sousa, coordenador da comissão executiva
deste desafio da Gulbenkian. Além disso, a redução das infecções também é
uma medida importante em termos de custos, já que as infecções aumentam
a mortalidade, o tempo de internamento e as despesas.
Em última
análise, admitem os profissionais, o que está em causa pode mesmo ser um
recuo civilizacional. "Identificamos as bactérias porque temos técnicas
altamente eficazes, mas depois não temos como resolver o problema ao
doente. Corremos o risco de ir outra vez para a era pré-antibiótica, em
que víamos os doentes a morrer porque não tínhamos antibióticos para
lhes dar", diz Margarida Mota.
* Vivemos uma época perigosa, somos muito evoluídos mas incapazes de resolver questões fulcrais, dá azo a que epidemias religiosas apocalípticas tenham terreno fácil para a crendice.
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