O resgate público
encapotado do Montepio
Por que razão haveria a Santa Casa de concentrar um investimento significativo numa participação sobrevalorizada num banco que provavelmente precisará de mais capital?
Por que razão decidiria a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML)
concentrar um enorme investimento numa participação accionista num
banco? Ou melhor: por que razão acharia uma instituição vocacionada para
o apoio social que um banco com uma carteira de crédito problemática e
um ambiente regulatório que exigirá mais capital no futuro é a melhor
opção para canalizar até 200 milhões de euros? Melhor ainda: porque
admitiria o provedor da SCML comprar uma participação de apenas 10%
nesse banco por um valor inflacionado?
Até
ontem a tese oficial para este negócio era a que o actual provedor da
SCML, Edmundo Martinho, defendeu em tom cândido em entrevista ao
Público: ao entrar no Montepio, a SCML espera "poder ter uma palavra a
dizer de modo a que o banco Montepio se centre na economia social". A
tese das boas intenções é areia para os olhos. Ninguém consegue explicar
como se transforma um banco comercial a sair de dificuldades num "banco
social" - na verdade ninguém sabe explicar o que é um "banco social" -,
nem como uma instituição que fica com 10% de outra pode reorientá-la
para aquilo que ela não é. A explicação para o negócio, a verdadeira,
foi sinalizada ontem no Parlamento por nada menos que próprio
primeiro-ministro: "Preservar a Associação Mutualista é preservar a
poupança de milhares de portugueses". A prioridade não é o retorno para a
Santa Casa.
Depois de estabilizados os maiores bancos, a
Caixa Económica Montepio é a maior preocupação do Banco de Portugal e
das Finanças. O banco tem feito parte do caminho das pedras, mas deverá
precisar de mais capital, até para cumprir com a nova regulação
financeira. É importante atrair um parceiro, mas não um parceiro
qualquer. Isto porque para a Associação Mutualista, o único accionista
da Caixa Económica, é muito importante que a entrada desse parceiro não
seja feita ao preço de mercado, inferior ao contabilístico.
O
banco é o activo principal do universo empresarial da Associação
Mutualista, cuja situação consolidada negativa não conhecemos pelo menos
desde 2015, já que a equipa de Tomás Correia não publica as contas de
2016. Para quem tem as poupanças em aplicações na Associação, a
respectiva situação financeira importa - pode ser invocada para
justificar penalizações quer nos juros, quer no capital das mesmas. Isso
seria uma surpresa para muita gente que pensa que as suas aplicações
têm a mesma garantia que um depósito - e mais um vexame para a regulação
(a supervisão da Mutualista cabe à Segurança Social).
Para
conseguir o 'bailout' dos mutualistas, e ajudar a estabilizar o banco,
alguém no Governo e no Banco de Portugal se lembrou que a SCML é o
accionista ideal para sofrer um "bail-in": tem bolsos fundos, o dinheiro
é de todos e não é de ninguém e a administração responde à tutela da
Segurança Social. Assim se percebe como o provedor da SCML aceita um
investimento que, contrariando as regras da diversificação, não só não
vai gerar retorno, como deverá obrigar a reforços de capital no futuro -
ou como admite pagar pelo Montepio como se este valesse mais do que o
maior e mais bem gerido BPI.
Mais de 85% da receita da
SCML vem do monopólio exclusivo dos jogos sociais concedido pelo Estado
para uso em fins sociais, em substituição desse mesmo Estado. Aquele
dinheiro é, em substância, dinheiro público. A concretizar-se nos termos
noticiados, a entrada da SCML no Montepio será um resgate público,
encapotado, dos mutualistas do Montepio à custa das finanças de uma
instituição secular de apoio social. Será, de caminho, um resgate da
actuação de Tomás Correia, que segue à frente da Associação Mutualista e
que condiciona a gestão da Caixa Económica, apesar dos processos do
regulador e das suspeitas da Justiça sobre a sua má gestão passada.
Parece coisa de outro tempo. Irá mesmo acontecer em 2018?
Jornalista da revista Sábado
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
21/12/17
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