12/06/2017

MANUEL SÉRGIO

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Voltaire (1694-1778)

Encontrei, em Maria Zambrano, no seu livro A Metáfora do Coração e outros escritos uma curiosa definição de filósofo: “O filósofo concebe a vida como um contínuo alerta, como um perpétuo vigiar e preocupar-se. O filósofo nunca dorme, afasta de si todo o canto acariciador, que poderia adormecê-lo, para manter-se lúcido e acordado. O filósofo vive em sua consciência e a consciência não é senão cuidado e preocupação” (Assírio & Alvim, 1993, p. 78). O filósofo, para Maria Zambrano, distingue-se por uma emblemática expressão de vida que, no meu entender, se concretizou exemplarmente no filósofo francês Voltaire, o pseudónimo de François-Marie Arouet.

Não logrou o aplauso e admiração de muitos dos seus contemporâneos e de estudiosos de todos os tempos, por ter chegado a intuições fulgurantes que deixaram eco na História da Filosofia. Também não foi o criador de uma escola ou de um sistema. Alicerça os seus ensaios nalgumas ideias de Locke e de Espinoza mas, acima de tudo, avulta nele um vetor que pode orientar-nos na compreensão da sua obra, a qual tem lugar destacado na revolução das ideias, que sacudiu a sua época: Voltaire inventou o “intelectual moderno, um ofício que tem algo do agitador político, bastante de profeta e não pouco do diretor espiritual. Esta figura suspeita mas venerada atingiu o auge do seu prestígio (…) com o caso Dreyfus e o J’accuse de Émile Zola; manteve depois o seu apogeu, ao longo de três quartas partes do século XX, apoiando-se em figuras como Romain Rolland, Bertrand Russell e Jean-Paul Sartre até entrar na franca decadência dos últimos 20 anos” (Fernando Savater, O Meu Dicionário Filosófico, D. Quixote, 2010, p. 400). Voltaire foi um racionalista de apurado espírito crítico, de análise clarificadora e… de grande coragem! Por isso, foi preso por duas vezes e só não foi pela terceira porque fugiu, cautelosamente, para Inglaterra.

Com uma inequívoca filiação espiritual (o racionalismo que nasce em Descartes) agora em contacto com o empirismo e o liberalismo do britânico John Locke, mais longe Voltaire se situa do fixismo da monarquia absolutista e do integrismo religioso. Há nele, de facto, uma fé, mas uma fé na razão – pela qual pode fundamentar-se a Ciência, o Direito e a Ética, sem qualquer crendice medieval. A Enciclopédia é o evangelho do século XVIII e as “virtudes” da Razão nela se proclamam como a grande dádiva de Deus ao ser humano. Está bem próximo de Voltaire o nosso António Sérgio, quando escreve: “A experiência é uma só e toda ela psíquica” (Cartas de Problemática, carta nº. 1, p. 2). De facto, tanto para Voltaire, como para António Sérgio, a Razão é um começo absoluto e o fundamento único do conhecimento. Marx, mais tarde, considera a infraestrutura económica a base da vida social e política, de acordo com as leis do materialismo histórico.

“Voltaire crê numa lei natural à qual não hesita em outorgar origem divina, cuja expressão indubitável se encontra na razão e no coração da pessoa humana” (Fernando Savater, op. cit., p. 403). Para mim, Voltaire é um humanista que, ao lado doutros do seu nível intelectual, imortalizou o Iluminismo, ou seja, um humanista que fez da Razão (e não no Mito ou na Crendice) o anúncio de um mundo novo. Podemos distinguir quatro etapas, no desenvolvimento histórico do humanismo: o humanismo grego, que ensinou ao Ocidente a confiança na razão humana, principalmente com Sócrates. Platão e Aristóteles; o humanismo jurídico dos romanos, que lançou as bases de uma civilização fundada no Direito; o humanismo judaico-cristão, que tão profundamente radicou, na Europa, o cristianismo que a Europa alimenta desta seiva os seus mais caros valores; o humanismo do Renascimento e das Luzes que, pela Razão, afirma sobretudo o primado da liberdade e da igualdade de qualquer ser humano, na organização da sociedade.

Respira-se uma atmosfera espiritual, de modo muito especial na Europa e no Ocidente, que é, portanto, uma síntese da filosofia grega, do espírito jurídico latino, da mensagem judaico-cristã e ainda da filosofia do Renascimento e das Luzes. “É a razão, mais do que o Capital e o Trabalho, a desempenhar então o papel principal. Os séculos XVII e XVIII são dominados pelos legistas, filósofos, escritores, todos eles homens de muita leitura, ao mesmo tempo que as ciências observam, classificam, ordenam, para descobrir a ordem das coisas” (Alain Touraine, Critique de la Modernité, Librairie Arthème Fayard, p. 37). Voltaire, no século XVIII, inscreve o seu nome entre as ”consciências vigilantes” que lutaram por que a Razão fosse também sinónimo de racionalidade emancipatória, ou seja, de crítica e ação política. Segundo Norbert Elias, no seu O Processo Civilizador: uma história dos costumes (Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990) “com o poder da razão analítica, aflora um novo humanismo.

Com esse método, o homem desenvolve uma razão instrumental que impõe as suas próprias leis. A ciência separa-se da fé, a matemática torna-se a linguagem do mundo. No lugar da ambiguidade dos discursos e da exegese dos textos, há a lógica e posteriormente o cálculo” (p. 37). Também por essa altura o èxito económico entra de observar-se como reflexo de virtude e o fracasso nos negócios como sinal de pobreza intelectual e até moral. Nasceu então o capitalismo que já conseguiu êxitos inesperados, espantosos, ao nível da tecnociência, mas ainda não proporcionou uma vida digna, para todos (todos!) os seres humanos. Verifica-se uma estreita vinculação entre o desenvolvimento constante dos países hegemónicos e o subdesenvolvimento dos países periféricos. Despontam patologias sociais, expressas, para os que não fecham os olhos à realidade, no consumo de drogas, nos vários tipos de violência, na (ainda bem visível) luta de classes.

Como o Hegel já nos ensinou, há duzentos anos, existe o senhor, porque existe o escravo. À arrogância e à corrupção de muitos representantes das elites corresponde a insegurança e o ressentimento da esmagadora maioria das classes trabalhadoras. Enfim, com muita razão tem acontecido muito conflito e muita miséria. Leonardo Boff, numa obra que havia de conhecer a breve trecho o êxito de sucessivas edições, Francisco de Assis e Francisco de Roma – uma nova primavera na Igreja, escreve: “A maioria dos cristãos está cansada de doutrinas e é cética, face a campanhas contra inimigos da fé, reais ou imaginados. Estamos todos impregnados até à medula pela razão intelectual, funcional, analítica e eficientista”. Há também necessidade absoluta da prática dos valores da tolerância, da cordialidade, da liberdade – uma prática que analisa, confronta e não pede perdão por ser diferente!

“Ter personalidade é um crime tão escandaloso, no nosso tempo, que se fala das raras criaturas que ainda por felicidade a possuem como de seres antediluvianos. Ser de certa maneira, não gostar disto ou daquilo, diferenciar-se dos outros – eis a heresia. E, claro, morram os heréticos. Abaixo essa canalha que se não aviltou – nas artes, na política, na religião e nos costumes. Por mim, confesso honradamente que é o contrário que desejo. E grito: Vivam esses fenómenos!” (Miguel Torga, Diário-VI, p. 157). E eu, “minimus inter pares”, grito também: Vivam esses fenómenos – que são humanos demais para se rojarem diante da ideologia e dos interesses dominantes, nas ciências, nas artes, na literatura, no desporto. Vivam esses fenómenos. Como Voltaire!

* Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto

IN "A BOLA"
05/06/17

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