Anéis de ouro a um tostão
O 'Momento Mastóideo', que me orgulho de ter cunhado, ocorre sempre que uma tia da província se deixa impressionar pela erudição de um rico filho
Assistiu-se esta semana, na imprensa portuguesa, a mais um
"Momento Mastóideo". O "Momento Mastóideo", que eu assinalo sempre que
posso, é inspirado naquele passo do filme "A Canção de Lisboa" em que
Vasco Santana, já reformado da vida boémia, responde a todas as questões
do exame de medicina, incluindo à última, e mais difícil, sobre o
esternocleidomastóideo. "Rico filho! Ele até sabe o que é o mastóideo!",
comenta uma das tias da província, muito impressionada. O "Momento
Mastóideo", que me orgulho de ter cunhado, ocorre sempre que uma tia da
província se deixa impressionar pela erudição de um rico filho.
Esta semana, a tia da província foi o jornal Público. Três quartos da
primeira página de domingo eram dedicados a um trabalho sobre linguagem
corporal. O título era: "Os gestos que traíram os protagonistas do caso
BES". Por baixo, dizia: "Um especialista em linguagem corporal analisou
os depoimentos na comissão parlamentar de inquérito ao caso BES e
chegou a conclusões surpreendentes." As conclusões surpreendentes são,
em resumo, estas: todos, ou quase todos os inquiridos mentiram à
comissão ou, pelo menos, não disseram tudo o que sabiam. Peço ao leitor
que contenha a surpresa. Imagino os espasmos violentos que experimenta
nesta altura. A culpa foi minha, que não o preveni para o assombro que
ali vinha.
O rico filho é Rui Mergulhão Mendes (RMM), "especialista em apurar a
veracidade de testemunhos através da linguagem corporal", a quem o
Público pediu para analisar os depoimentos de Ricardo Salgado, Carlos
Costa e outros. O jornal avisa que o especialista é "formado no Body
Language Institute, de Washington". (Rico filho! Ele até estudou num
instituto localizado no estrangeiro!) Quem desejar saber mais sobre este
instituto deve dirigir--se ao site de Janine Driver, chamado "Lyin'
Tamer" ("A Domadora de Mentirosos"), que é a fundadora, presidente e
proprietária do prestigiado instituto. O site inclui um vídeo de um
talk-show diurno em que Driver é convidada para dar conselhos acerca da
linguagem corporal de senhoras que pretendem engatar cavalheiros em
bares. E tem também uma ligação para o Body Language Institute, que
promete "Cursos certificados para potenciar a confiança, o carisma e a
carreira". Vê-se que RMM concluiu o curso com aproveitamento, porque
apresentar-se como "especialista formado no Body Language Institute, de
Washington" gera muito mais carisma do que dizer que se frequentou umas
aulas ministradas por uma autora de livros de auto-ajuda. De acordo com o
Público, os especialistas em linguagem corporal são tão importantes que
"os canais de televisão norte-americanos convocam regularmente peritos
na análise da linguagem não-verbal para comentarem, em horário nobre, os
casos mediáticos". (Ricos filhos! Eles até são convidados para falar
nas televisões da América! E em horário nobre!) Não admira, por isso,
que a análise de RMM tenha detectado, segundo o Público, "muitos
indícios de mentiras, inverdades, omissões, lapsos linguísticos e
incongruências". Como é evidente, eu, que ainda hoje não sou capaz de
distinguir uma mentira de uma inverdade, quis saber mais sobre o estudo
do especialista.
O método de detecção de mentiras (e também de inverdades) consiste na
análise de "micro-expressões". RMM observou "assimetrias nas
sobrancelhas" de Álvaro Sobrinho, "desaparecimento corporal" em Ricardo
Salgado, um "leve levantamento do lábio superior" em Carlos Tavares, um
"fechar mais prolongado dos olhos" em Zeinal Bava, um "microtoque no
nariz" de Paulo Portas e um "levantamento assimétrico de um dos cantos
da boca" em Granadeiro. Quase todos os inquiridos recorreram ao
igualmente suspeito "acto de ventilar". No entanto, o especialista
dedicou a maior parte da sua atenção a comichões. Neste ponto, o Público
pergunta, e bem: "Como distinguir uma simples comichão, normal, de um
sinal emocional?" RMM tem experiência em destrinçar comichões e não se
atrapalha: "Não há comichões por acaso. Os micropruridos que aparecem na
cara surgem por indicação do nosso cérebro. Pica-nos ali e não é sem
querer. Porque é que tocar no nariz está tão associado à questão da
mentira? Porque irrigamos mais sangue e a extremidade do nariz é mais
sensível e o sangue jorrou ali ou faltou (...). E faz comichão. (...)
Quando ocorre um pico de comichão e nós coçamos, geramos uma sensação de
acalmia, é uma forma micro de nos pacificarmos (...)." Para uma pessoa
que, como eu, passa grande parte do dia a coçar-se, esta revelação é
perturbadora. Eu minto quando estou a ler, minto a ver televisão, por
vezes minto até a dormir.
RMM avança ainda com uma descoberta que escapou a todos, incluindo
aos deputados da comissão que, distraídos com insignificâncias como o
conteúdo dos testemunhos, também já tinham deixado passar em claro a
maior parte das comichões: "Há um pormenor curioso: Portas e Salgado iam
rigorosamente vestidos da mesma forma, com a mesma gravata, o mesmo
casaco, a mesma camisa. O que nada nos diz sobre linguagem corporal, mas
não deixa de ser interessante." Muito, muito interessante. Acabo,
aliás, de fundar o Instituto da Indumentária Equivalente, cujo objecto
de estudo é, precisamente, a influência da alfaiataria nas comissões de
inquérito. Fico à espera do telefonema do Público. Temos primeira página
para o próximo domingo.
IN "VISÃO"
04/06/15
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