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HOJE NO
"OBSERVADOR"
Como foi o Natal dos portugueses
no país onde um quilo de bacalhau
custa o salário mínimo
A ceia de Natal foi difícil na Venezuela. O bacalhau custa um salário
mínimo e para conseguir pão para rabanadas é preciso enfrentar filas de
madrugada. Veja o que contam os portugueses de Caracas.
Na ceia de Natal de um português há coisas que não podem faltar,
mesmo na Venezuela, uma das economias em pior estado no mundo. Uma delas
é o bacalhau — mas, como as mercearias do governo não vendem esse
produto, restam os supermercados privados ou o mercado negro e o mínimo
que se paga por um quilo é um salário mínimo (90 mil bolívares
venezuelanos), o que, segundo o câmbio oficial do governo, são mais ou
menos 125 euros. “Nós já comprámos ‘o nosso fiel amigo’ há um mês.
Agora, se ainda houver à venda, está mais caro que caviar”, diz ao
Observador Cristina Marques, de 50 anos, há 33 a viver em Caracas.
Outra
coisa que não pode faltar é o azeite, que custa cerca de 18 euros, e
mais os ovos (que ainda não faltam) e, pelo menos, uma carcaça rija para
cortar em fatias e fazer rabanadas. Só que as carcaças que ainda se
encontram não têm tempo de enrijecer. São da mão para a boca. O pão, na
Venezuela, tornou-se um bem escasso.
As filas madrugadoras à frente das padarias tornaram-se a
imagem de um país que está a afundar-se, ancorado ao preço do petróleo.
Nos jornais há centenas de fotografias que mostram as filas junto às
lojas onde o governo ainda mantém os preços acessíveis. A comida é transportada até estes locais com escolta militar.
A espera começa por vezes às três ou quatro da manhã e, ao longo do
dia, os membros das famílias que esperam por pão ou farinha revezam-se
para não perderem o lugar numa fila que muitas vezes os leva a
corredores de prateleiras cheias de coisa nenhuma.
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É um cenário
que angustia Cristina. “Não há farinha sempre que uma pessoa precisa,
nem nos supermercados, nem nas mercearias. As padarias também nem sempre
a têm para poderem fazer pão. Nos locais onde os preços são controlados
pelo governo tudo esgota muito rápido e das coisas que mais me incomoda
é a fila enorme que se forma duas vezes por dia à porta das padarias:
as pessoas esperam seis, oito horas para depois na vez delas nem sempre
terem pão”, conta.
Gil Andrade, que trabalha numa seguradora e vive em Caracas há 35
anos, diz que “não se lembra de uma época tão grave” como a que se vive
agora no país. “De há quatro meses para cá as coisas pioraram muito”,
diz. Os portugueses “têm uma base sólida de apoio” porque “têm muitos
negócios ligados ao ramo da alimentação e acabam por conseguir
sobreviver e ajudar ainda alguns que estejam numa situação pior”.
A
duas semanas do Natal, a subida de preços nos produtos de primeira
necessidade, como óleo, farinha ou arroz fixou-se entre os 20% e os
150%. No início de dezembro, um quilo de arroz custava à volta de 4.000
bolívares, ou cinco euros à taxa oficial, e dia 13 já custava 7.000,
mais ou menos 10 euros, publicou na altura a Lusa.
“O que existe é vendido no mercado negro e aí os preços são incomportáveis para muitas famílias”, acrescenta Gil Andrade.
2,4 MILHÕES PROCURAM COMIDA NO LIXO
Segundo um estudo do Instituto de Investigações Económicas e Sociais
da Universidade Católica Andrés Bello, em Caracas 80% dos 30 milhões de
venezuelanos não ganham o suficiente para cobrir os gastos básicos e
quase 2,4 milhões procuraram comida no lixo. “Já vi pessoas procurarem
comida no lixo, isso é verdade”, diz Gil Andrade. Portugueses, que ele
saiba, ainda não, mas isso não quer dizer que as dificuldades não se
façam sentir também no seio da comunidade emigrante.
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O sociólogo que liderou o estudo, Luís Pedro España, disse, em declarações
ao jornal argentino Clarín, que o instituto que dirige continua a medir
os níveis de pobreza com inquéritos mensais nos quais pergunta às
pessoas “se se alimentam de comida que outras pessoas deitam fora” e a
conclusão é que “essa é de facto a situação de um número muito grande de
pessoas”.
O académico chama também a atenção para a pobreza
estrutural, que já chega perto de 35% dos venezuelanos, e para o facto
de 68% dos entrevistados no seu estudo assumirem que já foram obrigados a
pedir dinheiro emprestado para continuarem a comprar comida.
O Natal na família de Gil Andrade não foi de miséria, mas foi
necessariamente menos português, “sem as passas de uva nem os frutos
secos, que estão a preços proibitivos” diz, logo ressalvando que “há
situações que são obviamente mais graves que isto”. O português fala de
um fenómeno de “desmoralização geral, mesmo entre as pessoas que não
estão a passar tantas necessidades” porque “têm consciência do que se
passa num país que era um exemplo”.
“O Natal é mais pobre este ano
porque a alma também come. Em nossa casa ainda há pernil, vinho e
castanhas, mas a situação do país assombra tudo. Ao contrário do que se
lê nos jornais, não falta comida nem variedade de produtos no país, mas
ninguém com um ordenado remediado lhes tem acesso”, diz Maria José
Ferreira, uma luso-descendente com 28 anos, que trata da comunicação da
empresa de construção da família.
Maria José diz que “a classe
média ainda vive dentro de uma bolha” e que “tentam por tudo não a
rebentar”. A família dela “já viveu dentro dessa bolha”, mas no último
ano, para manterem o nível de vida, “têm feito um grande esforço que não
será possível manter para sempre”.
Petróleo vale 94% das exportações venezuelanas
Segundo
a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), a economia
venezuelana arrecadou 38 mil milhões de dólares com vendas para o
exterior em 2015. Desses 38.010 milhões de euros, 35,8 mil milhões foram
conseguidos com a venda de petróleo.
Nas contas da OPEP, a Venezuela tinha no final do ano passado
reservas (comprovadas) de petróleo equivalentes a 300,9 mil milhões de
barris e 5,7 biliões de metros cúbicos de reservas de gás natural.
COMO É QUE CHEGÁMOS AQUI?
A Venezuela foi durante décadas a economia que mais cresceu na
América do Sul por uma única razão: petróleo. A Venezuela é o país com
as maiores reservas de petróleo do mundo. O tipo de petróleo que tem no
seu território exige uma maior refinação, o que implica necessariamente
custos maiores. Nada disso foi um problema durante décadas, porque, com
os preços a crescer constantemente, as receitas também chegavam em
permanência e em maior volume, até porque o maior cliente da Venezuela é
nada mais nada menos que os Estados Unidos.
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As receitas da venda
de petróleo eram todas do Estado, porque a empresa que explorava essas
reservas era pública. Essas receitas permitiram investimentos de grande
envergadura, durante anos, na educação, na saúde e, especialmente, em
programas sociais, tornando Hugo Chávez um presidente muito popular,
apesar da corrupção e do autoritarismo na gestão do país.
A
presença avassaladora do Estado na economia venezuelana fez com que a
economia crescesse a grande ritmo durante muito tempo, mas também
provocou dependências que se viriam a revelar fatais no caminho que
levou à crise que agora se vive. A dependência das receitas do petróleo
era (e é) extrema: 94% das receitas com exportações são oriundas da
venda de petróleo. O país não tem produção própria em praticamente nada,
incluindo comida. Nada disto seria um problema, se os preços do
petróleo não descessem. Mas os preços desceram. E muito.
No final de abril de 2011, um barril de petróleo custava 110 dólares.
Nos anos seguintes, o preço variou entre os 110 e os 80 dólares.
Problemático, mas ainda não preocupante. Mas em 2014 as coisas mudaram.
Muito por culpa do boom da exploração de petróleo e gás de
xisto nos Estados Unidos, que começou finalmente a vender as suas
reservas, os preços começaram a cair abruptamente e um barril passou a
custar menos de 50 dólares no início de 2015, chegando a bater nos 26
dólares em fevereiro deste ano (entretanto recuperou para os 53
dólares).
Sem produção própria, e sem dinheiro para importar,
Nicólas Maduro tomou uma decisão que tem limitado ainda mais os (curtos)
fundos disponíveis do Estado. O pouco dinheiro que o Estado tem está a
ser usado para pagar dívida pública a investidores estrangeiros,
privando ainda mais os venezuelanos de bens essenciais nos seus
supermercados, nas farmácias e nos hospitais. A falta de dinheiro e a
escassez de bens provocaram uma subida de preços sem igual noutros
países. A Venezuela tem agora a inflação mais alta do mundo, segundo o
FMI, e vai piorar. Depois de ter visto os preços subirem mais de 120% no
ano passado, o Fundo espera que os preços cresçam em média 475,8% este
ano e disparem 1660,1% no próximo ano.
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A Venezuela é também, por
tudo isto, a economia em pior estado no mundo. Em 2015, numa estimativa
feita pelo FMI, a economia terá caído 6,2%. Este ano, nova recessão, mas
agora a economia venezuelana deverá ter criado menos 10% da riqueza que
em 2015, e em 2017 mais um ano de recessão, desta vez de 4,5%. A
destruição de riqueza faz-se sentir naturalmente nos níveis de
desemprego, que mais que duplicam de 2015 para 2016, passando de 7,4%
para os 18,1%, respetivamente, e podendo superar os 21% em 2017.
QUANTO VALE UM BOLÍVAR?
A
melhor e mais honesta resposta é…depende. Em boa parte, de quão rápido é
a trocar notas. Mas também de quem está a trocar essas notas.
Depende de quando se troca o dinheiro:
Sem receitas oriundas do petróleo, o governo venezuelano tem
recorrido a défices (superiores a 22% desde 2015) para continuar a
funcionar e à emissão de nova moeda para os pagar.
Isto tem levado a aumentos catastróficos nos preços: em 2015 a
inflação foi de 121,7%. Em 2016 deve crescer para os 475,8%. No caminho
atual, diz o FMI, a inflação pode chegar a 4505% em 2021.
A taxa de inflação considerada apropriada é de à volta de 2%.
Hiperinflação (de acordo com Phillip Cagan) acontece quando os preços
crescem a um ritmo mensal de 50%. O que está a acontecer na Venezuela já
se pode definir como um estado de hipervelocidade do dinheiro, em que o
seu detentor percebe que enquanto o detém ele está a perder valor,
optando por gastar, o que gera um ciclo de aumentos de preços, que levam
a mais gastos, que levam a mais aumentos, e por aí fora.
Depende de quem troca o dinheiro:
O governo venezuelano tentou criar taxas de câmbio fixas e
diferenciadas para controlar os preços nos bens essenciais, vendendo
dólares a um preço para quem importa bens de primeira necessidade, como
comida e medicamentos, e uma outra, onde o bolívar vale menos, para quem
não tem autorização para usar as duas primeiras para trocar os seus
bolívares por dólares.
Mas como estas taxas sobrevalorizam o bolívar, criou-se um mercado
negro para a troca a preços considerados mais próximos da realidade.
Resultado, há várias taxas, o que faz com que, dependendo do acesso de
cada um a dólares, a vida possa ter custos muito diferentes para as
pessoas.
Os números são maus, dos piores do mundo, mas a situação pode ser
pior, até porque o FMI não tem forma de fazer esta projeção com grande
certeza. A falta de estatísticas fiáveis, a recusa do governo
venezuelano em colaborar com o FMI (que não faz a sua avaliação regular
obrigatória da economia venezuelana há 12 anos) e a demora na
apresentação dos números que ainda vão sendo publicados complicam a
elaboração de qualquer previsão.
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No terreno, os venezuelanos estão
a sentir todos os efeitos nefastos de um caso típico de hiperinflação.
Os preços crescem a galope, de tal forma que os comerciantes já pesam os
maços de notas em vez de os contarem devido à quantidade de notas
necessárias para pagar um bem considerado barato. Os controlos impostos
nas fronteiras e a tentativa do governo de fixar o preço do dinheiro não
tem dado resultado, obrigando a gastar as reservas em moeda estrangeira
e criando na prática três preços diferentes para o bolívar (sendo um
deles o do mercado negro).
As decisões de Nicolás Maduro têm
criado ainda mais agitação. Quando o presidente anunciou que iria
retirar a nota de 100 bolívares do mercado, os venezuelanos correram às
lojas com receio de não conseguirem usar as notas mais tarde e os
comerciantes recusaram-se a aceitar as notas. Numa altura em que as
lojas já pouco têm para vender, o resultado foram episódios de
pilhagens, violência e protestos em várias partes do país. A situação
continua crítica e sob vigilância apertada, como conta ao Observador
Maria José.
“Muitas filas têm que ser vigiadas pela polícia porque
mais cedo ou mais tarde é quase certo que irá chegar a violência,
também é por isso que entram apenas algumas pessoas de cada vez e há
grades a fechar as janelas das mercearias, porque por vezes as pessoas
lutam pelos produtos”, explicou.
Nas redes sociais vão aparecendo
fotografias de filas cada vez maiores que serpenteiam à volta das
mercearias onde os preços são controlados pelo governo. A polícia está
estacionada à porta das mercearias e mesmo assim há relatos de
distúrbios. “Nos supermercados sobra a comida para cão”, como diz Maria
José, partilhando com o Observador a foto abaixo.
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HOSPITAIS VENEZUELANOS |
Apesar dos protestos e da revolta da população, Nicólas Maduro continua
com bons níveis de popularidade. O herdeiro de Hugo Chávez acusa a
“arbitrariedade” dos mercados internacionais e os valores
“especulativos” do petróleo. A popularidade de Maduro anda à volta dos
25%, longe dos números de Chávez, mas ainda há quem tenha medo de ver
ruir o regime e, com ele, o que resta dos empregos no setor público.
VALE TUDO
É fator decisivo para quem escolhe voltar e é igualmente o que mais
preocupa quem ainda lá está: não há segurança. “A Venezuela sempre teve
problemas a nível de segurança, mas nunca como hoje, em que o sequestro é
um dos negócios mais rentáveis, a degradação moral chegou ao máximo,
vale tudo”, diz Cristina que já teve que lidar com este problema de
perto.
A segunda vez foi com o seu ex-marido, pai do seu filho.
“Às seis da manhã, estava ele a ir para a fábrica trabalhar e vê uma
carrinha da polícia atravessada no caminho e parou. Levaram-no a ele e a
um empregado da fábrica. Tudo o que é português, espanhol, italiano,
árabe, chinês, para os delinquentes é sinónimo de gente com dinheiro,
ainda que esse não seja sempre o caso”, completa a portuguesa.
Quando Cristina conta que “hoje em dia é comum as pessoas roubarem os
sacos de comida que outra pessoa acabou de comprar”, acrescenta logo a
seguir que “os problemas de escassez estão a tornar impossível a vida de
muitas pessoas, principalmente aquelas famílias com filhos, um aluguer
de uma casa que não é delas”.
A situação é “desesperante para
muitos” já que “a maior parte das pessoas já esgotaram as suas
poupanças, outros têm mais dívidas que nunca e uma boa parte da
população faz apenas uma refeição forte diária”, acrescenta ainda a
portuguesa que tem uma fábrica de móveis para escritórios que gere em
conjunto com o ex-marido.
“O Natal não foi triste e ainda deu para
fazer filhoses e bolo rei porque somos cinco famílias juntas mas também
nós, para podermos comprar estas coisas, que só existem no mercado
negro, estamos sempre a cortar noutras.”
* E o Nicolás nunca mais cai de pôdre.
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